O Blog da EdUERJ entrevistou a antropóloga Laura Navallo, autora do livro “Armazenando utopias: dança, festivais e ação política no Brasil”, disponível em formato digital e impresso (sob demanda). Ela comentou sobre as políticas culturais e como elas afetam o cenário da dança contemporânea no Brasil. A entrevista foi concedida – e traduzida – por Laís Barreto.
Blog da EdUERJ: O que a inspirou a investigar os festivais de dança e, mais especificamente, o Festival Panorama (Rio de Janeiro, 1992) e a Bienal Internacional de Dança do Ceará (1997)?
A preocupação com eventos culturais ou, como podemos dizer, festivais, tem uma trajetória um pouco maior e se relaciona às minhas preocupações de pesquisa vinculadas ao interesse por compreender as maneiras em que se fazem e materializam “políticas culturais” em um sentido amplo. Tento me distanciar da ideia de que uma política, cultural neste caso, pertence e faz parte exclusivamente das incumbências do Estado. Pelo contrário, descobri que muitas vezes essas políticas são geradas e propostas por atores da chamada “sociedade civil”, especificamente associações civis ou simplesmente um grupo de amigos que, com o tempo, se constituiu em uma associação (pois isso permite captar recursos e entrar em articulação com os órgãos do Estado de maneira particular).
O “festival” é um prisma que me permite compreender quem são os distintos agentes sociais que estão produzindo o evento (em termos de produção/gestão cultural) e como ele está sendo feito e criado (tanto quanto à curadoria como em sua dimensão artística). Para que um festival aconteça, um grande número de pessoas está envolvida, articulando lógicas bem diferentes entre si (burocracia e administração pública, Estado, prestação de contas, criação artística, público, logística, etc.).
Acredito que toda pesquisa, além dos interesses analíticos, também nos interpela em uma dimensão afetiva e particular. Cheguei ao Festival Panorama (ainda se chamava Festival Panorama de Dança) porque morava no Rio de Janeiro. Eu havia me mudado para fazer minha pós-graduação em Antropologia (mestrado e doutorado), gostava de dança contemporânea e, enquanto morava na Argentina, fazia aulas regulares. Comecei participando do festival como público. Para o doutorado, queria estudar outros processos e, como mencionei, achei que esse evento dava continuidade às minhas preocupações analíticas da graduação e do mestrado (eu havia estudado um evento chamado “Abril Cultural Salteño” [Salta, Argentina] que acontece desde 1976).
O processo de pesquisa também nos reorienta e nos leva a redefinir objetivos e abordagens. O Festival Panorama fazia parte de um circuito de festivais. Eu teria adorado poder estudar os quatro festivais, mas isso era pouco viável, pois aconteciam mais ou menos no mesmo período de tempo – as formas de organização e as trajetórias dos festivais respondem a histórias locais singulares. Também faz parte da viabilidade da pesquisa o tempo destinado ao trabalho de campo e os recursos com os quais realizá-lo, afinal, essas dimensões também definem nosso universo de análise. Essas razões me fizeram escolher onde colocar o foco para estabelecer um contraponto entre eles.
Blog da EdUERJ: O que foi mais marcante ao acompanhar esses festivais?
Acredito que o mais marcante foi o grau de crítica e posicionamento reflexivo de bailarinos, gestores e do público que acompanhava, tanto nos processos de criação artística quanto em relação às políticas para a dança e ao que se buscava gerar para o setor.
Blog da EdUERJ: Quais foram os principais desafios enfrentados na elaboração da etnografia?
Durante a pesquisa, foi um grande desafio me inserir. Era um universo estranho em muitas dimensões e implicou criar vínculos com as pessoas do mundo da dança, que, em sua maioria, foram muito gentis, se interessaram pelo que eu estava fazendo e se disponibilizaram generosamente para a pesquisa. Outro grande desafio foi explicar um país que eu estava conhecendo e um processo de organização da “classe da dança” que teve uma característica sociohistórica muito particular. Na época em que ocorreram no Brasil, os processos de organização coletiva da dança na Argentina nem se vislumbravam. Era explicar um fenômeno local com as singularidades históricas que ele significava.
Os processos de conquista, colonização e independência configuraram nossas sociedades e deram origem a racionalidades estatais concretas. Então, foi um desafio compreender determinados acontecimentos históricos, como, por exemplo, a relevância da Constituição Federal de 1988, que é um marco importante de reconhecimento de direitos, onde a dimensão cultural adquire conotações específicas, representando uma ampliação da cidadania. Embora não seja a “origem” de um Ministério da Cultura, adquire outro sentido e significado se o colocarmos em perspectiva.
Blog da EdUERJ: Comente o título que dá nome à obra, “Armazenando utopias: dança, festivais e ação política no Brasil”.
A escrita deste livro aconteceu em um momento crítico para as políticas culturais e a cultura, em que estava sendo destruído algo que levou mais de duas décadas para ser construído. Eu havia presenciado e acompanhado o esplendor da maquinaria estatal destinada à produção cultural, os festivais mostravam esse apogeu, as inaugurações brilhavam e nelas se percebia o orgulho de poder realizar o evento. Esse esplendor não se refere apenas às condições econômicas, que de fato são um fator fundamental. Refiro-me às condições de possibilidade que a estrutura do Estado permitia, como contar com um ministério, departamentos e secretarias de cultura, leis de incentivo (federais, estaduais, municipais), parcerias público-privadas, articulações com diferentes países, colaborações artísticas, esperanças e sonhos de artistas, público e gestores. “Dança, festivais e ação política no Brasil” conta esse processo e narra essas relações sociais. “Armazenando utopias” busca nomear poeticamente as práticas sociais que “armazenam memórias” do que foi feito e como potência de um futuro. Por isso, este livro está dedicado a todas as pessoas que sustentaram e tornaram essas políticas possíveis.
Blog da EdUERJ: Na introdução do livro, você comenta as condições sócio-históricas que viabilizaram a pesquisa etnográfica. Entre os pontos destacados, estão as políticas para a dança no Brasil entre finais do século XX e início do século XXI, que eram vistas como “o ideal a ser seguido” na América Latina. Como você enxerga as mudanças nas políticas de incentivo à cultura nos últimos quinze anos?
Como mencionei anteriormente, o Brasil era uma referência em políticas culturais na América Latina, contava com uma estrutura estatal que sustentava a promoção e execução de políticas culturais. Ainda mais paradigmático era o fato de haver políticas voltadas estritamente para o setor da dança, e isso se deu porque a “classe” teve que “se organizar”. Essa foi uma frase célebre dita por um ministro (“a classe precisa se organizar”) e deu origem à mobilização política do setor da dança. Aquela conquista se sustentou por muito tempo no Brasil, até que houve uma troca de presidência e a decisão política foi pela destruição ou, quando não, pelo uso da estrutura do Estado e do fomento à cultura para outros fins.
De forma geral, poderíamos dizer que desde o início do século XXI, o campo cultural adquiriu outro lugar nas políticas públicas, não apenas aquelas que têm como “objeto” a cultura. As transformações sociais e capitalistas contemporâneas permitiram conceber diferentes dimensões do social em termos culturais. Como diria George Yúdice, a cultura se tornou um recurso. Em termos analíticos, consistiria em analisar como opera o que se entende por cultura em cada contexto histórico-social.
Blog da EdUERJ: Você comenta que a Argentina, seu país de origem, também viveu o ápice do fomento à área da cultura durante esse período. É possível traçar paralelos entre as diretrizes de políticas públicas para o campo da cultura nos dois países?
Seria um pouco arriscado fazê-lo, pois facilmente poderíamos cair em questões partidárias e falta de rigor analítico. O que é evidente, e podemos dizer isso também em relação a distintos momentos históricos (e é isso que precisamos explicar), é o lugar político que a cultura ocupa em nossas sociedades.
Blog da EdUERJ: Na pesquisa foram contemplados os processos que envolvem conceber, gerir e estar no festival. Esses eventos que, à primeira vista, parecem envolver períodos curtos de até 15 dias, na verdade, mobilizam um ano inteiro de trabalhos, como analisa Antonio Carlos de Souza no prefácio ao livro. Nesse sentido, os festivais podem ser lidos como práticas contínuas de construção de comunidades e de ação política?
Com certeza, o que não é óbvio. A dança como manifestação cultural e artística existe além e independentemente dos 15 dias que pode durar um evento. A dança como objeto de uma política pública exige seu reconhecimento como tal e pressupõe uma população que a realiza ou que está envolvida. Esse reconhecimento não é apenas estatal, mas envolve diversos agentes sociais. Por sua vez, essa comunidade, setor ou população precisa se sustentar e se constituir de forma constante como “setor” e ator político, e requer o reconhecimento social.
O festival tem permitido esse trabalho social de construção, que ao mesmo tempo implica a realização de outro ator, o gestor ou a gestora cultural. A dança e a gestão se entrelaçam, nesse caso. A gestão cultural é uma atividade social produtiva diferenciada de outros trabalhos. Então, ambas as atividades se reproduzem, se constituem e são percebidas como comunidade em um processo contínuo, e por isso excede o tempo que dura o festival.
Blog da EdUERJ: No penúltimo capítulo, ao tratar da Corporatização de uma política governamental a partir de experiências educativas como a aula de Marechal Hermes e a ocupação do Teatro Cacilda Becker, você comenta que “a dança contemporânea se fez e foi concebida”. Você pode explicar essa dimensão da dança contemporânea enquanto uma prática que ultrapassa os contornos da estética?
Isso se relaciona um pouco com o que foi dito na pergunta anterior. Essa “dança” pressupõe gestão, bailarinos, público, Estado. Corporifica uma política governamental porque não se trata de um estilo ou de uma estética pré definida de antemão, mas do que ali – no tempo e no espaço – está sendo concebido como aquilo que se enuncia, em sua dimensão performativa. Tanto o corpo e os movimentos quanto os enunciados performatizam uma política. A performance social que ocorre nesse momento confere significado ao que ali se concebe como ‘contemporâneo’. Toda a maquinaria estatal de gestão ganha corpo nesse momento, se atualiza nessa (ou em outras) performance(s) social(is).
Nesse sentido, eu adoto a ideia que Howard Becker desenvolve em “Os mundos da arte”. Trata-se de poder explicar o trabalho artístico mais do que uma estética da arte, porque se trata de um ofício compartilhado com profissionais de outras disciplinas.
Blog da EdUERJ: Por último, a quem você indicaria a leitura do livro?
Está direcionado a um público amplo. Também um público interessado nas ciências sociais, na antropologia, na gestão cultural. Eu adoraria que bailarinos, coreógrafos/as, gestores culturais pudessem lê-lo e que pudéssemos discutir e/ou continuar construindo juntos.