São Sebastião é o vencedor do Prêmio UERJ de Literatura. O Blog da EdUERJ conversou com Luis Felipe Silveira de Abreu, autor do titulo, que, além de escritor, é professor e cursa pós-doutorado na UFRJ.Luis Felipe falou sobre o processo de escrita, suas influências literárias e a proposta adotada em São Sebastião. Construída com estrutura de uma road novel, a ficção contempla, por meio de reminiscências do protagonista, “uma história familiar, em tom intimista, sobre uma relação entre pai e filho” e aborda contextos sensíveis como o da pandemia de Covid e a crise da AIDS nos anos 1990.
Blog da EdUERJ: Você poderia falar um pouco sobre o tema central de São Sebastião?
A novela amarra no tempo duas pandemias a partir do relato do narrador, um dramaturgo internado em uma UTI de COVID-19 e que, em seu delírio induzido pela sedação, conta duas histórias paralelas: as lembranças de uma viagem de carro feita com o pai, tendo como pano de fundo a crise da AIDS no começo dos anos 1990; e também um monólogo teatral que reconta a vida de São Sebastião, figura que é a um só tempo padroeiro dos doentes e figura simbólica da cultura queer (ambivalência que por si só já inspirou boa parte da trama). É uma história sobre as relações entre a memória pessoal e a coletiva, refletindo os ecos entre gerações dos traumas e tragédias históricas. Mas é também uma história familiar, em tom intimista, sobre uma relação entre pai e filho.
Blog da EdUERJ: Quem são os personagens principais?
Sendo uma novela curta, e com seu escopo narrativo concentrado em uma história familiar, temos poucos personagens – mas que se desdobram em figuras múltiplas. O foco da história é o dramaturgo, nunca nomeado, que existe na trama em três versões: como narrador, no presente; nas memórias de sua infância, em 1993; e como São Sebastião, personagem que interpreta em seus trabalhos e que costura os dois tempos narrativos anteriores. Temos também a figura do pai, igualmente sem nome, homem de segredos que constituem o centro de gravidade da trama. Há outra séries de personagem que pai e filho encontram no decorrer da sua viagem, mas que interessam apenas na medida em que abrem aspectos da relação entre os dois protagonistas.
Blog da EdUERJ: O livro faz referência ao período da epidemia de AIDS e também à Covid. Como surgiu a proposta de contemplar esses períodos no roteiro?
Eu acredito no poder (e na necessidade) da representação ficcional para entendermos melhor o mundo. Nossos dramas e nossas tragédias, sobretudo, como o luto, parecem pedir por uma reelaboração narrativa, histórias que nos permitam organizar nossos afetos. Pensando nisso, quis experimentar nesse livro uma tentativa de dar conta dessas duas epidemias. Ambas me parecem representativas dos modos pelos quais lidamos com nossas crises: no desejo de superar e seguir em frente, silenciamos suas histórias – sem perceber que suas heranças seguem trabalhando e marcando nossa vida. Ao querer abordar a Covid, pensei que retomar a memória da AIDS serviria para iluminar colateralmente ambas as experiências; como, dentro da própria trama, o narrador usa dos martírios de São Sebastião para entender a própria história.
Blog da EdUERJ: Em termos de estilo literário, como você descreveria São Sebastião?
Sempre gosto de brincar com os gêneros literários, usando de suas molduras e convenções como um espaço de criação. São Sebastião não é diferente, sendo construído como uma road novel, um romance de estrada. Assim, pude ter uma base narrativa sólida e linear, a partir da qual se permitem algumas experimentações com os pontos de vistas e o tempos do relato. Já em termos de prosa, tentei criar uma bifurcação de estilos: as seções que relatam a viagem do narrador escritas de modo mais direto, influenciado pelo olhar infantil que ele possuía à época; já as partes do monólogo de São Sebastião têm uma prosa mais barroca, derramada, marca, ao mesmo tempo da exposição emocional da peça e do tom de delírio dessa sua reencenação do monólogo em um leito de UTI. Em determinado momentos esses registros passam a se misturar – forma do livro demarcar o mergulho progressivo do narrador em sua sedação, além de representar a longa sombra dos traumas que é tema da novela.
Blog da EdUERJ: Como funciona o seu processo de escrita? Você adota algum tipo de rotina ou prática específicas quando inicia um livro?
Adoraria ter uma rotina diária de escrita literária, mas ela nem sempre é possível já que disputa espaço no meu cotidiano com outras demandas profissionais. Quando quero desenvolver projetos mais longos, como um romance ou uma novela, acabo apostando mais na imersão, aproveitando oportunidades de tempo (como férias…) e dedicando alguns meses a eles, apostando em horas e horas de escrita diária. Nesses momentos, gosto também de me cercar de referências e inspirações, lendo vários livros e assistindo vários filmes que acredito terem alguma ressonância (não só temática, mas também atmosférica ou temporal) com o que quero produzir. Nesse processo, não costumo trabalhar com grandes roteiros prévios, apenas com uma ideia básica da trama e do tema, deixando a prosa guiar e descobrir caminhos.
Blog da EdUERJ: Quem são os autores que mais marcaram a sua persona como leitor/escritor?
Sempre tive uma relação pessoal com a literatura brasileira, marcada por uma proximidade e um interesse no trabalho de nomes como Caio Fernando Abreu, Ana Cristina César, João Gilberto Noll e Sérgio Sant’anna. Me interessa na obra deles as misturas de gêneros, a construção de atmosferas, o apelo ao pop como um afeto geracional, o interesse em entender o Brasil pelas suas margens – características que tento trazer também em São Sebastião. Além disso, tenho uma influência formativa de Roberto Bolaño, que comparece em tudo que escrevo.
Blog da EdUERJ: Em 2024, você publicou “As rimas internas” pela Editora Aboio e agora terá a novela São Sebastião publicada pela EdUERJ. Hoje, como você avalia as possibilidades oferecidas pelo mercado literário aos novos escritores?
Acho que é um mercado, ao mesmo tempo, receptivo e competitivo aos novos escritores. Temos hoje uma variedade de casas editoriais independentes ou de médio porte que podem servir de porta de entrada a autores iniciantes; isso sem falar no fenômeno crescente da autopublicação. Mas me parece também haver uma certa saturação de mercado a partir disso, que leva a poucos livros encontrarem de fato seus leitores. É uma situação intrínseca a um país de pouco incentivo à cultura, com números cada vez menores de leitores, etc. Por isso acredito na importância também de outros atores nesse cenários – como festivais, livrarias, prêmios e até a própria universidade -, não só em promover novos nomes em específicos, mas sobretudo ajudar a fomentar uma cultura literária e o acesso a esta.
Blog da EdUERJ: Você venceu a primeira edição do Prêmio UERJ de Literatura. Que significado tem essa conquista para você?
É uma alegria muito grande a conquista desse prêmio, por representar um reconhecimento do meu trabalho, como um autor ainda iniciante, e também por permitir que São Sebastião possa chegar aos leitores. Ter a novela avaliada por um júri tão competente e sensível me faz acreditar na força e potencial do livro. Além disso, é gratificante esse reconhecimento por parte da EdUERJ, uma casa representativa para a literatura e a academia brasileiras; fico bastante orgulhoso de agora participar desse movimento da editora em direção à ficção.
Blog da EdUERJ: Quem são os leitores que você espera conquistar com São Sebastião?
Imagino que este livro vai interessar aqueles curiosos em pensar sobre a história recente do nosso país, aqueles que gostam de refletir sobre nossas heranças e memórias. Mas também, pelo foco na narrativa entre pai e filho, e o interesse em investigar os mecanismos internos dessa relação familiar, creio que São Sebastião possa se conectar a qualquer leitor que busque uma história emocional, afetiva.
Blog da EdUERJ: Por fim, desejamos boa sorte a São Sebastião e muito sucesso para a cerimônia de lançamento!
Só tenho a agradecer a EdUERJ por essa oportunidade de compartilhar meu trabalho. Aguardo ansioso pelo lançamento!
Foto: Italo Almeida