Em Nasci numa viagem, no balaio das estrelas, María Rossi Idarrága investiga as articulações entre gênero, etnicidade e pertencimento a partir de narrativas e perspectivas de mulheres indígenas que habitam no Vaupés, na Colômbia. Em entrevista ao Blog da EdUERJ, a autora contou sobre o processo de pesquisa e compartilhou um pouco de suas experiências no trabalho de campo.
Blog da EdUERJ: A que remete o título Nasci numa viagem, no balaio das estrelas?
É uma frase de uma das principais interlocutoras da pesquisa, chamada Marcela, no livro.
Quando começou a me contar a história de sua vida, disse: “Eu nasci numa viagem, no balaio das estrelas.” A frase é linda, mas, sobretudo, está carregada de sentidos. Com essa imagem, ela conta também como, desde o nascimento, sua vida está marcada por viagens, deslocamentos e por situações que não corresponderam ao esperado. Nasceu num lugar que não era território do seu povo, nem era adequado para nascer. Lembra novamente disso ao me contar sobre momentos da sua vida nos quais identidade não foi sinônimo de pertencimento, ou para procurar explicações para decisões difíceis ou momentos de tristeza e saudades.
Com essa frase, ela chamou minha atenção para as articulações entre a história regional, os motivos familiares da viagem, a importância cosmológica do território e sua transcendência na formação de uma pessoa e, em suma, para a articulação de muitas escalas entre as quais se constrói o sentido da vida e com as quais ela interpreta e vive as emoções e as contradições.
Blog da EdUERJ: A publicação se afasta dos recortes mais convencionais que costumam pesquisar povos indígenas em temáticas de colonização, evangelização ou urbanização. Como surgiu o interesse em pesquisar culturas e tradições indígenas sob uma perspectiva de gênero?
Quando comecei a trabalhar em Mitú, em 2006, fiquei fascinada pelo multilinguismo da população indígena. Como menciono no livro, trata-se de um território que reúne vários grupos e, nessas redes de relações, encontrei que era frequente que as mulheres falassem, com propriedade, várias línguas. Lembro de algumas que falavam 10, 8, 5 línguas. Depois, lendo sobre os povos da região, confirmei que isso era recorrente. Os homens também falam várias línguas, mas em menor proporção, e costumam viver, no dia a dia, na própria língua – o que não era tradicionalmente o caso das mulheres, que viviam cotidianamente na língua de seus maridos.
Com o passar do tempo, ao perguntar sobre o território, as histórias ou saberes próprios, as respostas das mulheres eram: “Eu não sei sobre isso, pergunte aos homens.” Às vezes ouvi literalmente: “Se quiser falar sobre cultura, fale com os homens.” Esse paradoxo aumentou minha curiosidade e me levou a ler etnografias sobre esses povos, encontrando um vastíssimo campo de pesquisa, descrevendo relações de identidade, parentesco, cosmologia e território, articuladas e complexas, mas que sempre me deixavam com perguntas sobre as mulheres nessa trama de relações.
Me deparei também com grupos muito estudados pela antropologia, uma produção riquíssima, porém, como era frequente na antropologia feita com povos indígenas amazônicos, muito mais orientada aos lugares masculinos nas relações sociais, e com poucas, e mais recentes, reflexões sobre as mulheres e sobre as relações de gênero. Por outro lado, na experiência prévia de trabalho e pesquisa na Amazônia, o caráter masculino das fronteiras amazônicas me parecia altamente relevante para essas reflexões. Contei com a imensa sorte de ter professoras que, desde outras abordagens e localizações de pesquisa, compartilharam comigo várias reflexões e perguntas sobre gênero – dentre elas, Adriana Vianna e Maria Elvira Díaz-Benitez –, e com as leituras inspiradoras de autoras como Jean E. Jackson e Christine Hugh-Jones, refletindo sobre as mulheres neste contexto cultural; além das conversas e trocas com colegas que também trabalham com mulheres indígenas em contextos amazônicos, como Vivian Rosado Cárdenas, Diana Rosas Riaño e Juana Valentina Nieto.
Blog da EdUERJ: O livro mostra como tradições patriarcais enraizadas estruturam muitas das relações de parentesco e pertencimento. Qual é o papel feminino na construção desses aspectos, dentro das comunidades indígenas no Vaupés, por exemplo?
Acho que a noção de “tradições patriarcais” aqui não é a mais adequada, porque gera a impressão de um modelo mais rígido do que de fato é e desvia a atenção da multiplicidade de grupos, focando mais numa ideia de estrutura que seria fechada e comparável com outras “estruturas patriarcais”, quando o caráter aberto e fluido do sistema é central – o que implica que a dimensão interétnica é constante. Evito essa noção porque remete a ideias de poder, patrimônio e autoridade, que não se aplicam facilmente às relações sociais da região. Não pretendo, com isso, desconhecer que o sistema é marcadamente masculino, mas procuro descrever como essas diferenças de gênero são vividas e narradas.
Procurei ver as relações de parentesco em várias escalas, que fazem referência a posições possíveis de pertencimento, organização, sentidos, hierarquias e moralidades, chamando a atenção para relações interculturais que vão além desses grupos, incluindo diferentes frentes coloniais em diferentes momentos históricos. Assim, é fundamental entender gênero e etnicidade desde uma perspectiva intercultural e informada pela história, pelas relações coloniais e suas várias formas de violência diferenciadas para homens e mulheres.
O papel feminino, então, é de mobilidade e é fronteiriço, fazendo evidente o cosmopolitismo desses grupos. Por isso, é desde esse lugar das mulheres que as múltiplas escalas e sentidos se fazem mais evidentes, e é nas narrativas delas que se mostra mais recorrentemente como o pertencimento é agência e precisa ser costurado de formas concretas nas diferentes escalas possíveis, em contextos pessoais e regionais de muitas mudanças.
Blog da EdUERJ: Em um dos capítulos você escreve que busca “questionar as construções da etnicidade a partir dos lugares femininos”. Que lugares seriam esses?
Ainda que esse tema seja central ao longo de todo o livro, trato dele com mais profundidade nos capítulos 3 e 4. No terceiro, o foco está nas relações de parentesco, no multilinguismo e nas formas de casamento, tanto na literatura etnográfica quanto em várias histórias pessoais. No quarto, procuro fazer esse questionamento considerando diferentes abordagens etnográficas sobre gênero e povos indígenas no Vaupés e no Alto Rio Negro, detalhando a trajetória de Marcela, uma mulher Desana.
Duas representações desses lugares femininos são o de estrangeiras, na família conjugal, e o de ausentes, na família paterna. Mas as mulheres, no seu dia a dia, constroem pertencimento e acolhimento, distanciando-se dessas referências, nem sempre fáceis de habitar. Em suas trajetórias, fica mais evidente que as identidades diferenciadas também se constroem com repertórios comuns de saberes, práticas e relações – e que esses repertórios constituem ferramentas para se relacionar e se reconhecer e, como disse uma delas, para construir seu lugarzinho, seu local no mundo.
Blog da EdUERJ: Ao invés de se limitar apenas ao material coletado, você insere relatos sobre a sua experiência no processo de pesquisa. Na sua visão, trazer essa dimensão pessoal é importante para o trabalho?
Diria que, além de ser importante, é necessário por vários motivos. Primeiro, faz parte da explicitação das condições de pesquisa, permitindo descrições mais precisas e lembrando que não há um ponto zero nem uma possível neutralidade a partir da qual as informações reunidas e as reflexões construídas possam ser separadas das relações concretas estabelecidas na pesquisa. Segundo, neste contexto, no qual as diferenças de identidade e as fronteiras étnicas são tão presentes e relevantes, resultava necessário refletir sobre minha localização concreta nelas e sobre como, mesmo com muitas diferenças que nos constituem, fazemos parte de relações sociais historicamente compartilhadas, inclusive documentadas há mais de cem anos. É sempre necessário lembrar o quanto compartilhamos, para poder prestar atenção não só nas diferenças culturais, mas nas desigualdades de outras ordens.
Também me pareceu necessário porque transitei em escalas distintas, algumas públicas e outras na intimidade do cotidiano, e as possibilidades de comunicação em cada caso estão relacionadas diretamente com quem são as pessoas envolvidas. Não pretendo ter reunido as histórias de vida completas de nenhuma delas, mas sim o que foi possível compartilhar entre elas e eu, em momentos de comunicação que construímos juntas e que, em alguns casos, constituíram o que chamei de “interstícios vitais”: momentos em que foi possível abrir uma pausa ou uma fenda para lembrar, narrar e compartilhar dimensões que são constitutivas da vida, mas que nem sempre são enunciadas ou faladas.
Finalmente, porque alguns dos temas tratados surgiram nas nossas interações a partir da vulnerabilidade compartilhada, particularmente histórias relacionadas com sofrimento, medo e violência. Sendo tão dependente das relações e das condições de comunicação, nosso trabalho precisa tratá-las como parte do método e como condições de possibilidade de cada pesquisa.
Blog da EdUERJ: Ao longo do livro você reúne 40 entrevistas com mulheres indígenas e mestiças. Como foi a experiência de se aproximar delas e registrar suas narrativas, e quais cuidados você teve ao inserir na pesquisa as histórias que elas compartilharam?
As relações com elas foram estabelecidas em momentos distintos e desde várias posições. Algumas eram conhecidas de anos atrás, quando trabalhei como consultora na região, outras fui conhecendo no período da pesquisa. Todas sabiam sobre mim – algumas mais que outras –, e todas podiam traçar a rede de relações entre as demais mulheres participantes e as minhas relações com elas. Foram, portanto, diferentes formas de convívio, mais ou menos próximas e mais ou menos formais. Sempre nos comunicamos em espanhol, minha língua, e muitas das nossas interações foram conversas antes de serem entrevistas. Me acolheram sempre de forma generosa, mas também crítica. Todas pediram explicações sobre o que eu queria fazer, como e por quê. Perguntaram sobre como funcionam as pós-graduações, como é estudar no Brasil, de onde vem uma bolsa de pesquisa, como eu consegui e quem financiava meus períodos em campo. Depois de terminar o período em campo, fiz uma reunião com cada uma para apresentar o que já estava escrito e os planos para continuar. Nessas reuniões, elas foram interlocutoras críticas, que complementaram e precisaram as minhas interpretações e me deram ânimo para continuar. Com algumas delas, consegui apresentar os resultados do doutorado um tempo depois de defender, e ainda devo entregar cópias do livro para elas. Tenho muito agradecimento e admiração por cada uma delas.
Blog da EdUERJ: Pode-se dizer que seu livro se constrói também como um registro de histórias ao escutar e incluir a narrativa das mulheres entrevistadas. Você o enxerga dessa forma?
Sim. A reunião das histórias vem da intenção de apresentar a riqueza e a complexidade das vidas e relações delas, em sua cotidianidade e dentro de um conjunto altamente complexo que me fascinou desde que comecei a trabalhar na região. É uma busca por construir a reflexão a várias mãos e por reconhecer e transmitir a força e a coragem de cada uma delas.
Blog da EdUERJ: Há planos de estender esse trabalho, seja com outras pesquisas, retornando às pesquisas de campo ou novas entrevistas?
Um campo de pesquisa relacionado está nas trajetórias de mulheres envolvidas em participação política, no lado colombiano e no lado brasileiro da fronteira, ainda por ser desenvolvido. Outro campo de reflexão em que estou trabalhando agora, mas localizada um pouco mais ao sul, está nas regiões de fronteiras na Amazônia. Atualmente moro e pesquiso na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, no Amazonas – Alto Solimões e no rio Içá. Pretendo levar algumas cópias do livro para entregar a elas, espero que em breve, e, a partir daí, veremos novos caminhos.
Blog da EdUERJ: Para quem você indicaria a leitura de Nasci numa viagem, no balaio das estrelas?
O livro pode ser visto a partir de várias abordagens: para pensar gênero e etnicidade, um tema cada vez mais frequente na antropologia, e para pensar sobre os povos indígenas do Vaupés, Alto Rio Negro, um campo já clássico na disciplina. Serve para pensar sobre narrativas e histórias de vida, memórias compartilhadas de sofrimento, participação política de povos indígenas e fronteiras amazônicas. Assim, recomendo-o para pesquisadores interessados nesses temas. Ao mesmo tempo, o destaque para as narrativas delas foi uma tentativa de permitir uma leitura não só acadêmica, mas qualquer pessoa que tiver interesse em histórias de mulheres indígenas e em dimensões cotidianas das fronteiras amazônicas.
Entrevista por Beatriz Araujo, estagiária de jornalismo.




