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Blog da EdUERJ entrevista autora de “Dois gêneros, duas histórias?”

No dia 4 de julho, às 19h, a Editora da UERJ lança “Dois gêneros, duas histórias? A fundação da ciência política no Brasil”, na Livraria Travessa, em Botafogo

O Blog da UERJ conversou com a autora, Marcia Rangel Candido. Ela é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e atua também como coordenadora de pesquisa no Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) e editora de Dados, uma das mais longevas publicações nas ciências sociais no Brasil

Blog da EdUERJ:  Professora, o seu livro aborda a fundação da ciência política no Brasil e traz à tona o papel determinante das mulheres durante o processo. De que maneira surgiu o interesse pelo tema?

Marcia Rangel Candido: Sempre gostei muito de estudar história e foi natural começar a me questionar como a minha área de formação na pós-graduação – a Ciência Política – surgiu no Brasil e em outros países do mundo. Ao pedir referências às pessoas especialistas na área e ao ler textos sobre o tema, passou a me incomodar o predomínio exclusivo de menções a homens fundadores. A princípio eu entendi que isso era lógico, pois as mulheres demoraram mais a ingressar no ensino superior e a ciência política constituiu como objeto central de estudo espaços de poder que frequentemente registram desigualdades em termos de gênero. Resolvi, todavia, me aprofundar no problema e a indagar como se deu essa inserção das mulheres na área. Se elas não apareciam como “fundadoras”, onde figuravam na ciência política em relação aos homens? Foi aí que veio a surpresa. Mesmo tendo estudado desigualdades desde a graduação, eu não esperava que meus achados no doutorado fossem revelar tantas injustiças. A disciplina conservou uma minoria de mulheres em posições de poder intelectual, e, ao mesmo tempo, existiu um forte interesse deste grupo social pela área desde seus primórdios. Ao longo da história, elas chegaram a ser proporção substantiva de mestras e doutoras, compondo inclusive maioria nas primeiras turmas de pós-graduação. Além disso, encontrei mais surpresas como resultados da pesquisa, como o fato de que pertenceu a mulheres de gerações pioneiras, em comparação a homens do mesmo patamar, pelo menos três lideranças relevantes nas medidas tradicionais de avaliação da ciência: a de taxas de citação ao conjunto de obras, a de regularidade de práticas de internacionalização das pesquisas e a maior quantidade de orientação de gerações de estudantes.

Blog da EdUERJ: O título (“Dois gêneros, duas histórias?”) faz uma provocação. Poderia haver narrativas distintas da fundação da ciência política no Brasil, dependendo do gênero de quem conta a história?

Marcia Rangel Candido: Creio que sim. O que a história da ciência tem nos mostrado é que a emergência da diversidade na produção de conhecimento gera também novas perspectivas dentro dela, com maior sensibilidade às diferenças sociais e às desigualdades que atingem as pessoas de variadas maneiras na sociedade. Por outro lado, é necessário ter cautela em relação a essencializações de papeis sociais de gênero. No caso da ciência política brasileira, homens e mulheres tenderam a reforçar uma imagem de predomínio masculino na fundação da disciplina; em contraposição, de fato, os primeiros livros a questionar esta representação foram de autoria de mulheres. Tanto o meu, quanto um precedente, publicado pela Associação Brasileira de Ciência Política, chamado “Mulheres, Poder e Ciência Política”, organizado pelas colegas Flávia Biroli, Luciana Tatagiba, Carla Almeida, Cristina Buarque de Hollanda e Vanessa Elias de Oliveira.

Vale ressaltar que a provocação no título do livro é um posicionamento. Hoje vemos nas livrarias prateleiras separadas de livros de mulheres, enquanto os homens seguem expostos como representantes de algo isento e neutro, apartados de qualquer suposto viés analítico. Não gosto desta separação. De um ponto de vista mais amplo, não restrito à ciência política, inúmeras obras que se propunham “universais” refletiram somente sobre nomes de homens. Em resposta, mulheres passaram a construir um campo de pesquisas muito rico, que buscava enfatizar uma história com enfoque no grupo delas, as “esquecidas”, as “excluídas” etc. De certa forma, tentei colaborar com este último tipo de abordagem, mas dei igualmente importância a fazê-lo de um ponto de vista mais relacional. A pesquisa não se limitou a expor uma história específica de mulheres, dando espaço a comparações com os homens, o que demonstrou que não foram registradas evidências históricas para justificar a precedência de um grupo sobre o outro. Com disparidades menos profundas do que se poderia imaginar, ambos contribuíram para o desenvolvimento da ciência política no país.

Ademais, ressalto que o livro se restringiu a contrastar trajetórias de homens e mulheres que estiveram no princípio da fundação da ciência política brasileira, assim como avançou na construção de indicadores sociais restritos ao tratamento de gênero como uma categoria dicotômica e descritiva. Por isso a referência a “dois gêneros”. Fiz nele o que era possível ser feito com o tempo e os recursos que me estavam disponíveis, mas acredito na ciência como um projeto colaborativo em que vamos progredindo juntos. Há uma agenda de pesquisas sobre desigualdades na ciência que tem muito a crescer, dando atenção a tipos de discriminação mais variadas.

Blog da EdUERJ: O livro oferece uma riqueza de dados e de informações. Como você estruturou essa coleta de subsídios para a pesquisa? Quais os maiores desafios?

Marcia Rangel Candido : O desenvolvimento de novas pesquisas científicas se ampara irrestritamente no que veio antes. É impossível aprendermos sobre um determinado tema de interesse sem ler colegas que escreveram sobre ele no passado. É a partir daí que podemos descobrir onde situar nossa colaboração específica, mas é também nesta fase exploratória que conhecemos os métodos, as técnicas e os dados já disponíveis para consulta, assim como o que ainda precisa ser feito. Desta forma, minha primeira etapa de organização, após a definição do problema de pesquisa que queria enfrentar, foi buscar verificar como diferentes perspectivas produziram análises sobre a ciência, dos estudos de gênero à história intelectual, da sociologia dos intelectuais à sociologia da ciência, da história da ciência, de um modo mais abrangente, à história particular da ciência política.

Acho que este tipo de exercício preliminar traz certa confusão, pois nos expõe a muita informação, que muitas vezes é conflituosa e discrepante; mas ao mesmo tempo nos torna mais humildes. Chega o momento em que percebemos que não é possível dar conta de tudo, que caminhos precisam ser escolhidos. Estipulei, portanto, um recorte temporal, um corpo de autores com que iria dialogar e um montante de evidências empíricas que conseguiria coletar. Acho que o maior desafio deste movimento é renunciar a questões que você também identifica como urgentes. Gostaria de ter tratado de desigualdades raciais na ciência política de maneira cruzada a gênero, como já fiz com colegas em artigos antes, mas vi que não seria possível, pois o esforço no levantamento de dados é distinto, como explico no livro. Outra coisa que me ajudou, além de reconhecer limitações, foi demarcar perguntas e objetivos claros a cada capítulo. O livro tem uma pergunta mais geral, que é encarada no conjunto dos capítulos, mas cada um deles pode existir sozinho. Isto auxiliou a impor metas e prazos factíveis.

Blog da EdUERJ: Um dos prismas mais significativos da publicação é o do trabalho das pioneiras da ciência política no Brasil. Como o trabalho dessas pesquisadoras impactou a disciplina?

Marcia Rangel Candido: As mulheres participaram de todas as frentes possíveis na institucionalização da ciência política no Brasil. Embora não tenham liderado a criação de pós-graduações por uma pequena diferença temporal com a formação dos homens que o fizeram, elas já estavam nas primeiras turmas de mestrado, inclusive sendo maioria em algumas delas, também escrevendo os primeiros trabalhos que viriam a se tornar clássicos em diferentes áreas da disciplina. Na criação de instituições, elas contribuíram ainda com a formação de associações profissionais nacionais e colaboraram pioneiramente em pesquisas com associações profissionais internacionais. Além disso, em comparação a indicadores sobre a trajetória de homens fundadores, certas mulheres fundadoras ficaram à frente na quantidade de alunos orientados, nas práticas de internacionalização e no conjunto total de citações a suas obras, como mencionei na resposta à outra pergunta. A despeito de parte da história da ciência política subestimá-las, elas conseguiram, portanto, atingir posições prestigiosas até mesmo em critérios usuais de avaliação de produtividade na história da ciência.

Blog da EdUERJ: Ainda hoje, é possível que existam resistências, mesmo que veladas, à valorização da perspectiva feminina da história da ciência política?  

Marcia Rangel Candido: Não tenho nenhuma dúvida que sim. Ainda que tenhamos avançado nos debates sobre desigualdades de gênero na ciência política, parte da comunidade científica ainda reforça uma série de barreiras à incorporação mais estável de mulheres na disciplina. No livro, mostro que historicamente as mulheres estiveram em bom número entre tituladas em mestrado e doutorado na área. A queda mais substantiva de sua presença ocorreu ao longo do tempo no quesito de participação como docentes e pesquisadoras com contratos mais fixos nas universidades.

Embora a redução da participação feminina em postos mais altos seja um elemento mais generalizável das desigualdades de gênero na ciência, ou seja, não restrito somente à ciência política, é importante ressaltar os elementos distintivos da disciplina. Ao contrário de outras áreas de exatas, a ciência política tem um contingente especializado de mulheres disponível para ser contratado. O buraco mais severo, portanto, não está necessariamente na formação de mão de obra, mas sim nas suas chances de empregabilidade no mundo acadêmico.

Creio que tal fenômeno vem sendo possível por duas dinâmicas principais. A primeira delas diz respeito ao reforço de certas áreas de pesquisa nas quais as mulheres ainda são minoria. Grande parte dos concursos que abrem para seleção de professores no Brasil não considera estudos com perspectiva de gênero ou raça, por exemplo, que costumam ter maior participação de mulheres/negros. O problema é ainda maior quando as pesquisas que empreendem este tipo de recorte são associadas a um viés meramente político, descreditadas como ciência, como se demais abordagens também não tivessem caráter de algum modo político.

Por outro lado, enquanto área do conhecimento dominada por homens brancos em posições de poder, a ciência política forneceu baixas evidências de preocupação com as suas desigualdades internas. A agenda de pesquisa sobre o problema demorou a ser iniciada e, somado a isso, importantes documentos de avaliação da área foram difundidos desconsiderando elementos como o impacto da maternidade nas taxas de produtividade, questão que já é endereçada por outras disciplinas das ciências sociais, como a sociologia e a antropologia, onde não por acaso se tem mais mulheres.

Blog da EdUERJ: O fato de as mulheres terem demorado a obter o direito ao voto e de serem, no passado, tantas vezes alijadas das conversas sobre política (que seria “tema de homem”) consolidou algum tipo de preconceito que dificultou a disciplina de se tornar mais interessante para elas?

Marcia Rangel Candido : O livro mostrou que esta noção de falta de interesse das mulheres na ciência política pode ser interpretada como uma falácia. Outras pesquisas também atestaram que o mesmo ocorre para a política institucional, mas com razões distintas. Ao estudarmos a constituição da ciência política no Brasil, pudemos ver uma participação significativa de mulheres na área desde seus primórdios, tendo elas enfrentado problemas para serem reconhecidas ou mais estabelecidas profissionalmente. Contudo, na época em que a disciplina se institucionalizou no país, as mulheres já dispunham de direito ao voto e estavam ingressando em peso no ensino superior, onde logo seriam maioria.

Tal elemento é algo a se destacar no âmbito nacional em relação a outras realidades estrangeiras. Dando um paralelo superficial, nos Estados Unidos, por exemplo, os fundadores da disciplina, que criaram a associação profissional de lá no começo do século XX, eram contra o direito ao sufrágio universal. Logicamente isto afastou as mulheres deste nicho da área, tendo em vista que um dos principais movimentos políticos delas naquele momento advogava pelo voto feminino. Em somatório, elas ainda enfrentavam maiores desafios para conquistar diplomas em algumas carreiras, como a ciência política, por serem minoria isolada, casos excepcionais; longe do que viria a ocorrer no Brasil, que quase cinquenta anos depois, chegou a ter mulheres em maior número nas primeiras turmas da disciplina.

No caso da política institucional, por sua vez, as taxas de candidatura e de eleição de mulheres seguem sendo muito baixas no Brasil e em outras partes do mundo. Mas o que os estudos de gênero têm mostrado é que estes resultados não são tão simples de interpretar. Não basta dizer que existe uma falta de interesse supostamente natural das mulheres na política. Pelo contrário. Os altos indicadores de violência de gênero na política, bem como as diferenças de financiamento e de estímulos a candidaturas femininas são barreiras bastante fortes a serem ponderadas nos julgamentos. A alta inserção de mulheres em movimentos sociais, a magnitude de protestos feministas e o predomínio do gênero nos debates de certas temáticas, como no agendamento de políticas voltadas ao combate da própria violência contra elas, também são indícios de que certas conclusões dependem muito do tipo de espaço e participação que se está valorizando.

Blog da EdUERJ: A quem você indica a leitura de Dois gêneros, duas histórias?
Marcia Rangel Candido
: A política é parte fundamental da vida social e impacta a rotina de todos. Por conta disso, entender como produzimos estudos sobre política e quem contribuiu historicamente para desenvolver a ciência política me parece um tema com relevância ampla. O livro traz informações históricas e indicadores sociais interessantes sobre o assunto, contribuindo para os estudos de gênero, a história da ciência política e a história da ciência de uma maneira mais geral.