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Entrevista com Ana Karla Canarinos, autora de “Além da formação”

O Blog da EdUERJ conversou com Ana Karla Canarinos, autora de Além da Formação – teoria e crítica literárias no Brasil em chave comparativa (anos 1960-1980). O livro, cujo lançamento ocorre na terça, 5 de novembro, na Livraria da EdUERJ, é uma contribuição aos estudos da crítica literária no Brasil. Canarinos é professora de literatura brasileira da UERJ e Doutora em Teoria Literária pela Unicamp.

Blog da EdUERJ: Como surgiu a ideia central do livro Além da Formação?   

Ana Karla: O tema surgiu a partir da polêmica em torno da poesia de Sousândrade. No mestrado, na UFPR, eu analisei a épica O Guesa, e como a Marília Librandi – importante pesquisadora sousandradina – afirma, Sousândrade torna-se “um caso” na historiografia brasileira por conta da sua diferença em relação aos demais poetas indianistas. Na Formação, Candido localiza o poeta como um “autor menor”, Haroldo de Campos se contrapõe ao crítico uspiano e escreve o “Revisão de Sousândrade”, como uma forma de reivindicar a importância do poeta. Fiquei fascinada com a polêmica, com as nuances argumentativas dos críticos, com as distintas apropriações que eles fazem da teoria literária e, sobretudo, com a possibilidade de perceber semelhança na diferença ou mesmo diferença na semelhança. Ao longo do trabalho, o gesto argumentativo segue exatamente este movimento, isto é, perceber semelhanças entre críticos aparentemente muito distintos, como Silviano Santiago e Roberto Schwarz, assim como perceber discordâncias entre Schwarz e Antonio Candido, autores muito próximos do ponto de vista institucional.   

 Blog da EdUERJ: Dentro da perspectiva dos estudos sobre literatura, porque é importante também pesquisar a própria teoria/crítica literária?   

Ana Karla: Em uma conversa informal com Nabil Araújo, professor de teoria literária do ILE-UERJ, estávamos comentando sobre a permanente insatisfação de Luiz Costa Lima com a precariedade da teoria no Brasil ao longo de sua produção crítica. Então Nabil me disse algo interessante sobre o ato de trabalhar com história da crítica, estudos metacríticos e metateóricos: uma das possibilidades de fazer teoria no Brasil estaria justamente na atividade metacrítica. Vale ressaltar que Nabil pensa as possibilidades da história da crítica e da teoria na obra também publicada pela EdUERJ, Teoria da literatura e história da crítica: momentos decisivos. Ou seja, as diferentes abordagens que os quatro críticos fazem do estruturalismo, por exemplo, apontam para diferentes leituras do mesmo teórico, e ao historicizar e fazer uma metacrítica desse problema sincrônico, de alguma maneira, alguma teoria sai disso. Seja especificamente de um autor, uma vez que a comparação permite elucidar melhor o ponto de vista individual, seja pela tentativa de detectar uma espécie de modus operandi da crítica nacional. O caso “Lévi-Strauss” ilustra isso que estou afirmando. Merquior, em A estética de Lévi-Strauss, faz uma leitura da antropologia lévi-strausseana mapeando seus pontos de contato com a sociedade, através do conceito de significante flutuante. Em contrapartida, Luiz Costa Lima, em O estruturalismo de Lévi-Strauss (1968), salienta a interface do antropólogo francês com a linguística na criação da antropologia estrutural, ou seja, uma análise que não busca fazer uma ponte entre a estrutura e a sociedade. Sob este aspecto, podemos destacar pelo menos dois Lévi-Strauss na crítica literária brasileira da década de 1970, duas formas distintas de devoração da teoria francesa. Essas diferenças ganham contornos ainda mais complexos quando relacionadas ao contexto histórico de Ditadura Militar, à consolidação dos cursos de Letras da USP, com a viagem ao Brasil de diferentes intelectuais franceses – entre eles Lévi-Strauss – e a ampliação da pós-graduação no país, com o nacional desenvolvimentismo e com a chegada de diferentes teorias: estruturalismo, pós-estruturalismo, desconstrução, pós-colonialismo, estética da recepção, estética do efeito, marxismo e etc. Eu diria que a importância de estudar teoria/crítica literária está em pelo menos três âmbitos: 1) na possibilidade de fazermos Teoria pela via da metacrítica; 2) na compreensão do campo universitário brasileiro; 3) na interface entre a teoria literária e a literatura brasileira.  

 Blog da EdUERJ: O livro analisa as perspectivas de quatro críticos brasileiros, Roberto Schwarz. Luiz Costa Lima, José Guilherme Merquior e Silviano Santiago. Gostaria que comentasse o processo que levou à escolha desses nomes.  

Ana Karla: A escolha surgiu pelo mapeamento do campo intelectual nacional. Schwarz é um dos críticos literários marxistas mais importantes do país, muito lido e discutido nas universidades estaduais paulistas, como a USP e a Unicamp. Por outro lado, Silviano Santiago, outro crítico de enorme importância e que teve outra interlocução teórica. O autor foi o primeiro crítico a escrever sobre Jacques Derrida no Brasil, em Glossário de Derrida, e ainda que pouco ou nada lido nas universidades de São Paulo, encontrou seu espaço em outras universidades brasileiras. Luiz Costa Lima, o mais teórico de todos, inicia sua carreira mantendo uma interlocução forte com o estruturalismo, e posteriormente envereda para os estudos da mímesis através de uma interlocução com a Estética do Efeito. O autor também é muito pouco lido em São Paulo e encontra maior ressonância no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Finalmente, José Guilherme Merquior, autor pouquíssimo lido na universidade brasileira, de direita, e que sempre esteve fora do eixo acadêmico. Apesar da produção imensa de Merquior, hoje reeditada pela Editora É Realizações sob a supervisão do professor de literatura comparada da UERJ, João Cézar de Castro Rocha, o autor segue marginal nas universidades, justamente pelo seu tom polemista, conservador e anti-teórico, em alguma medida. Hoje, se eu pudesse incluir outro autor, escolheria também Haroldo de Campos. Acho que a relação que ele mantém com a obra de Derrida é completamente diferente da desenvolvida por Silviano Santiago. De toda forma, acho que os quatro críticos resumem, em alguma medida, as linhas de força da crítica literária brasileira entre as décadas de 1970 e 1980. Certamente, todos eles, em alguma medida, mantiveram uma forte interlocução com Antonio Candido e a Formação da literatura brasileira, seja pelo viés do elogio ou da ruptura.  

 Blog da EdUERJ: “Além da formação” enfoca formas de relação (de aproximação ou distanciamento) desses críticos citados com a obra do Antonio Candido, Formação da literatura brasileira. Por que essa obra causou tanto impacto?   

Ana Karla: A Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, foi um marco na historiografia nacional, considerando a passagem do crítico de rodapé para o scholar e na importância que a análise literária – a leitura cerrada – ganha na sua história literária. A narrativa que ele desenvolve na Formação – hoje já revista por diversos professores. como o trabalho da professora da UFF, Anita de Moraes, em Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido e Contornos humanos: primitivos, rústicos e civilizados em Antonio Candido, e da professora da UERJ, Carolina Correia, através da sua crítica sobre Guimarães Rosa, em Jaguaretama: o mundo imperceptível em meu tio Iauaretê – atribui uma maior importância à crítica literária, aos elementos internos, o que não é pouca coisa para o momento. Para além disso, a formação do curso de letras da USP e de diversas outras universidades brasileiras foi pensada a partir da perspectiva de Antonio Candido, então ademais da sua importância enquanto historiador da literatura, ele também teve um lugar relevante na constituição do campo institucional dos estudos literários no país. Candido também orientou diversos intelectuais, de maneira muito generosa, como foi o caso de Luiz Costa Lima, que defendeu sua tese Estruturalismo e Teoria da Literatura sob a orientação de Candido, ainda que sua obra se afaste em grande medida dos pressupostos da Formação. Há inúmeros relatos memorialísticos de ex-orientandos e colegas do autor, que destacam o grande professor que Antonio Candido foi para os seus alunos. Considerando o ponto de inflexão que a sua obra fundamental significou para os estudos literários e o peso institucional advindo com a formação de diversos cursos de letras no Brasil, Candido torna-se uma figura incontornável para os críticos literários da década 1970 e 1980. Todos eles, direta ou indiretamente vão se voltar para sua obra, seja para criticá-la ou para estabelecer uma tentativa de continuidade.  

 
Blog da EdUERJ: Existe uma característica mais marcante da crítica literária entre 1960 e 1980, época marcada pela ditadura militar? Os estudos literários chegaram a ser afetados por processos inerentes à ditadura, como a censura?  

 Ana Karla: Eu diria que um dos pontos mais marcantes dessa crítica é o espírito polemista, algo que se perdeu na crítica acadêmica do século XXI. A universidade e a pós-graduação se consolidam nas décadas de 1970 e 1980, entretanto hoje a universidade e os programas de pós-graduação são ainda maiores e em maior número. Na década de 1970, os autores de fato se liam, discutiam os mesmos assuntos, muitas vezes de forma autoritária, e isso fomentava a polêmica. De fato, os embates calorosos estão presentes na crítica literária brasileira desde o XIX, mas com o desenvolvimento universitário e a consolidação da crítica acadêmica no pós-Formação, a polêmica atinge um ponto inclusive institucional entre as universidades. Por exemplo: a Puc-SP – com os concretos – e a Usp – com Candido, ou entre a Usp e a Uerj, com Luiz Costa Lima. Outro exemplo de disputas é em torno do “lugar das ideias” no Brasil. Silviano Santiago escreve “O entrelugar do discurso latino-americano” e Schwarz escreve “As ideias fora de lugar”. Maria Sylvia de Carvalho Franco, professora de filosofia da Usp, irá entrar na questão e publicar “As ideias estão no lugar”. Há um campo em disputa entre o dentro, o fora e o entre, o que é extremamente produtivo. Os embates surgem justamente da leitura do campo teórico inimigo e na busca pela interlocução. Outra polêmica interessante é o impasse em torno do estruturalismo, em que diversos críticos se posicionarão a favor ou contra a teoria literária. Luiz Costa Lima e Silviano Santiago serão mais abertos à teoria, com diversas nuances e particularidades que eu tenho mediar no livro. Merquior e Schwarz restarão mais cautelosos à teoria literária, ainda que Schwarz seja um dos maiores marxistas brasileiros e Merquior tenha escrito diversos livros sobre teoria, sempre com um viés de crítica mordaz. Na universidade do século XXI os temas são muito mais diversos, o que é ótimo. Entretanto, muitas vezes somos lidos apenas por aqueles que apresentam a mesma perspectiva teórica ou estudam o mesmo tema, fazendo com que o campo perca esse “acirramento” ou essa “disputa” calorosa da década de 1970. Se, por um lado, isso muitas vezes recaía num autoritarismo teórico em que a universidade que lê A não pode gostar do crítico B, também não se corria o risco de neutralizar o objeto literário ao só ler e conversar com os pesquisadores que pensam de maneira semelhante. Ou seja, nas décadas de 1970 e 1980, a polêmica, atrelada ao contexto ditatorial, tem como consequência leituras distintas do mesmo objeto, ou mesmo fortes embates teóricos, que por vezes geram o autoritarismo e a configuração do campo institucional dos estudos literários que permanece como vestígio até hoje: universidades mais uspianas leem muito Antonio Candido e Roberto Schwarz, universidades menos uspianas, leem mais Luiz Costa Lima e Silviano Santiago.  

Sobre a segunda pergunta, sim, a crítica literária foi afetada. A polêmica do estruturalismo é um exemplo disso. Alguns intelectuais de esquerda, como Carlos Nelson Coutinho, condenaram os adeptos do estruturalismo no momento da Ditadura Militar, como se ser estruturalista significasse ser conservador e de direita por não seguir uma análise dialética. Sob este aspecto, os ânimos ficaram mais alterados e a recepção do estruturalismo sofreu os efeitos da censura. Cria-se no país uma ideia de que aderir a uma análise estrutural da obra torna o teórico alienado diante da violência e da repressão. Há uma espécie de despolitização do estruturalismo, que em parte, pode ser justificada pela Ditadura Militar.  

 
Blog da EdUERJ: Por fim, a quem você indica a leitura de Além da formação – teoria e crítica literárias no Brasil em chave comparativa (anos 1960-1980)? 

Ana Karla: Eu indico para todos os estudantes ou pesquisadores que desejem ter um panorama da crítica literária nacional.