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Entrevista com Marco Aurélio Corrêa Martins sobre livro “Um sistema provincial”

No dia 29 de abril, às 19h, a EdUERJ lança “Um sistema provincial de ensino no século XIX”, na Livraria da travessa de Botafogo. O Blog da EdUERJ conversou com o autor, o professor da Unirio, Marco Aurélio Corrêa Martins.

Blog da EdUERJ: O livro traz uma abordagem dos primórdios da educação no Rio de Janeiro. Como surgiu o interesse pelo tema?   

O historiador inglês E. P. Thompson chamou-nos a atenção para a história da classe operária inglesa no seguinte termo: se existe uma classe operária, certamente ela tem uma história. Ou seja, não caiu do céu azul como um raio. Nesse sentido, venho vasculhando a história da educação em busca de uma origem para aquilo que chamamos de “escola católica”. É uma pesquisa ainda inacabada embora já bem desenvolvida. Mas foi um caso fortuito que me levou a privilegiar o sistema público de instrução: a invasão ao site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 

Sem acesso a essa fonte de pesquisa, fui aos relatórios de presidentes da província do Rio de Janeiro em busca das origens da escola católica no meio político da província. Ao fazê-lo, fui entrando em contato com a estrutura criada e aperfeiçoada de um sistema público de ensino. Esses relatórios foram instituídos por lei, em 1834, e eram, portanto, obrigatórios. Os presidentes precisavam abrir o ano da Assembleia Provincial com a leitura desse relatório que acumulava dados, às vezes bem detalhados, das diversas áreas de atuação pública, com estatísticas e orçamentos, avaliações, proposições etc. 

Um incômodo que sinto como pesquisador da história da educação é ver o último quartel do XIX apresentado como O século XIX. E a pesquisa revelava uma atividade intensa em gerar escolarização na província; a região crescia muito rapidamente com a expansão cafeeira, no segundo e terceiro quarteis do século. 

Blog da EdUERJ: Você apresenta várias minúcias sobre a instrução pública a partir da instalação da Assembleia Provincial em 1835 até 1875, com dados dos relatórios de presidentes da província do Rio de Janeiro. Como se deu esse trabalho de pesquisa? Quais foram os maiores desafios?  

O trabalho básico do pesquisador é ler os documentos. Li mais de oitenta relatórios relativos a 40 anos. Não é exatamente o esforço da leitura que caracteriza o desafio, mas perceber as nuances e vicissitudes do tempo histórico: distinguir uma linha de raciocínio de outra, de uma variação política, ter atenção à retórica e a desconfiar daquilo que parece óbvio. Para compreender aquilo que não está no documento como, por exemplo, o conflito da Assembleia com o presidente Aureliano Coutinho no final da década de 1840, foi preciso recorrer a outros estudos e outras fontes de pesquisa para entender que o conflito não estava no tema da instrução, mas nas intrigas palacianas da capital imperial. 

Os relatórios dos presidentes estão todos digitalizados e disponíveis na internet pelo Center for Research Libreries, formado por um consórcio de bibliotecas desde 1946 e sediado em Chicago. Assim, não foi tão difícil acessar os documentos. Entretanto, para ter acesso aos textos legais, ou seja, às leis que eram mencionadas foram necessários três anos de peregrinação em acervos on-line e físicos. Esse conjunto de leis seria trazido como anexo do livro, mas pelo volume, ficou inviável, e estou compartilhando para outros pesquisadores em outro livro, no formato digital, com 500 páginas. 

Quando você sente o desafio de buscar as fontes, percebe o desafio cotidiano dos profissionais dedicados aos arquivos documentais, especialmente os históricos. Esses profissionais e suas instituições precisam e merecem um maior destaque e atenção pública. 

Trabalhar com dados estatísticos e censitários também foi um desafio. Não tanto pelos números, pois só militei com uma estatística muito básica. Mas usar esse instrumento na compreensão da história, ou como prefiro, na compreensão da temporalidade histórica. Não temos usado muito esse instrumento na história da educação. 

Blog da EdUERJ:  A pesquisa abrange quarenta anos de idas e vindas do papel do Estado na educação. Quais questões foram preponderantes durante essa trajetória do ensino?  

Inicialmente, e logo no primeiro ano da administração da província separada da administração da corte imperial, ou seja, 1835, havia um projeto de instrução pública marcado por regulamentos, criação de escolas e estrutura de funcionamento e recrutamento de professores. Esse projeto foi muitas vezes modificado, mas nunca deixou de existir. Acredito, como Antônio Cândido, que isso se deveu aos funcionários de carreira do Estado, aqueles que não eram diretamente ligados a políticos e seus partidos, ou seja, não eram colocados e retirados conforme o tempo eleitoral, mas permaneciam em suas funções enquanto os governantes se sucediam. Alguns deputados provinciais poderiam entrar nessa conta como Montezuma e Luiz Honório Vieira Souto eleitos e reeleitos muitas vezes. Sobretudo esse último, era considerado verdadeiro vade mecun da Assembleia. 

Em segundo lugar, chamou a atenção o diminuto número de crianças nas escolas. Enquanto se costuma reclamar da falta de escolas, faltavam crianças, ou seja, sobravam vagas. A análise dessa situação é complexa e me mantive ligado ao que diziam as fontes. Entretanto, para ir um pouco mais além, fui anotando os dados estatísticos. Esses dados eram recrutados por força de lei, mas eram muito sonegados por aqueles de “de longe” que deveriam entregá-los. Há registros em jornais da época e mesmo em documentos de “boatos” que circulavam nos rincões sempre em desconfiança dos governos. Eram as fake News da época que circulavam por anos, embora lentamente. 

Outra questão intrigante foi observar a evolução orçamentária sempre exponencialmente aumentada. Somos ainda influenciados pela narrativa republicana de descrédito do Império, em especial sobre o Segundo Império quanto a um suposto abandono da causa escolar e a pesquisa revela que houve forte incremento da instrução nos orçamentos. Ainda hoje, padecemos dessa submissão ao que os republicanos disseram sobre seus adversários derrotados. Para fora dessa questão, ficou bem marcado o esforço de fazer lograr esse sistema. Embora algumas questões sejam estranhas, como negar financiamento aos possíveis professores a serem formados na Escola Normal; investiu-se na escola e mesmo investiu-se em formação de professores, mas negaram recursos para que pessoas se deslocassem das vilas interiores para a capital Niterói a fim de formarem-se. Reputo a essa resistência ao pensamento liberal da época que acreditava na tese do self made man.

O pensamento liberal era o principal vetor do pensamento político. Liberais e Conservadores, referindo-me aos partidos, eram ligados a alguma corrente do pensamento liberal, inicialmente vindo da Inglaterra passando ao movimento francês. 

Blog da EdUERJ: Como as tendências políticas se refletiam no ensino da época?  

O modelo proposto para a didática escolar era o método monitorial inglês, conhecido como Método Lancaster. Mas foi o projeto de instrução nacional francesa o grande inspirador dos primeiros presidentes da província, conhecidos na política como os Saquaremas, membros do Partido Conservador. 

Seguindo a linha de reflexão histórica de Ilmar Matos, os Saquaremas foram os articuladores do Estado Nacional brasileiro centralizado sob a oposição dos liberais alinhados no Partido Liberal. A composição de forças entre a centralização e a descentralização, ou maior poder nas províncias e municípios diante do poder central, parece refletir no modo como se organizou esse sistema de instrução. 

Na prática se põe um regulamento geral, com um controle central, mas faz-se a inspeção local com os próprios locais. Ou seja, competiria à população local e seus representantes a fiscalização e a promoção imediata do sistema escolar. Isso me parece uma negociação do tipo à descrita por Ilmar Matos em “O tempo Saquarema”, entre “os de longe” e “os de perto”, ou seja, o poder radicado em Niterói e o poder disperso no interior da província. 

A política de nomeação do presidente pelo poder central do Império, descrita no corpo do Imperador, fazia circular ideias e práticas entre as províncias. Por exemplo, a passagem de Couto Ferraz na província do Espírito Santo, na Província do Rio de Janeiro e na capital imperial em sequência continua, na qual ele reformou a instrução nas três unidades, promovendo um controle estatal maior sobre a instrução particular, trazendo-a para o controle do setor público/estatal. 

Voltando ao sistema francês, ele foi o modelo de formação do cidadão/súdito do Estado moderno. O modelo franco-prussiano foi o grande inspirador desse processo de formação dos nacionais nos sistemas ocidentais. Quanto a isso, não parece ter havido divergência entre Conservadores e Liberais. 

Outro tipo de tendência política a qual não dei maior destaque, sobretudo porque foquei mais na estrutura e na política do sistema de instrução, foi a negociação que visava às bases eleitorais dos deputados e políticos da administração. Entretanto, em alguns momentos, as chamadas “intrigas palacianas” ou as disputas incitadas pelo projeto de “conciliação” produziram efeitos nesse projeto. É nesse ritmo que os Liberais vão aprovar, no final da década de 1860, a “lei da liberdade do ensino”, nome que eles mesmos propuseram. 

A “liberdade de ensino” propunha a retirada do regramento público sobre a iniciativa particular. Serviu mesmo para incentivá-la, afinal o pensamento liberal estimulava esse tipo de “liberdade”. Entretanto, a lei não ensejou o fim do sistema público, tampouco o abandono desse sistema, embora houvesse algum esforço em tornar particulares as iniciativas mais custosas para a Província e, também, de financiar iniciativas particulares através da política e subvenções. Dar dinheiro público a particulares na escolarização desse período sofria forte resistência! 

Blog da EdUERJ: Como era pensado o ensino na província do Rio de Janeiro? Que tipo de cidadão a escola pretendia formar?  E a quem ela de fato atendia?  

Acho que já falei um pouco sobre a primeira parte da questão. Mas vele a pena repetir: o ensino era pensado a partir de um modelo de cidadão/súdito do Estado moderno europeu, especialmente a França da pós-Revolução de 1830, de feição urbana e burguesa. O primeiro regulamento da instrução da província foi todo montado sobre a lei francesa, conhecida como Reforma Guizot, de 1833. Então, o ensino era pensado para a invenção de uma nacionalidade. Estávamos a pouco mais de 10 anos da emancipação. 

A escola pretendia atender aos brasileiros livres e dar-lhes status superior na sociedade por serem instruídos nas aulas de instrução primária que consistia em ler, escrever, contar e rudimentos de história e geografia pátria. 

Um limitador desse projeto era o tamanho do território e sua ocupação. As vilas eram distantes umas das outras, seu território coberto por florestas sendo substituída por grandes plantações de café. A vida rural, distante da urbana, tinha péssimas condições de acesso e mobilidade física e social. O sistema escravista e o sistema de colonato pareceram-me influir na conformação dessa situação. Infelizmente não pude explorar esse tema buscando dos historiadores a compreensão dessa relação. 

Blog da EdUERJ: Você acredita que a independência de Portugal tenha deixado um lastro de dificuldades para a província do Rio de Janeiro? 

Só posso falar do sistema de instrução. Da Independência até o Ato Adicional da Constituição em 1834, as poucas escolas existentes no território fluminense estavam vagas por falta de professores; ou seja, não funcionavam. A partir da instituição de um governo regional fluminense, separado do governo central da capital Rio de Janeiro, é que se criou e impulsionou o sistema escolar. Nesse caso, eu diria que a independência, ao se consolidar no projeto de um governo regional para a província, sim, deixou um lastro, mas não de dificuldades, ao contrário. 

Aproveito para lembrar que para além das questões políticas e sociais, como a mencionada questão do trabalhador, o Rio de Janeiro foi o grande centro econômico do país com a plantation do café. Não é apenas uma força política, mas uma força econômica arrastando um grande contingente de pessoas das províncias de São Paulo e Minas Gerais, além da região de Campos dos Goytacazes para o interior do Vale do Paraíba do Sul. A modificação do território foi rápida e crescente. 

Blog da EdUERJ: Um dos capítulos cita um período em que havia mais escolas do que crianças. Por que ocorreu tal situação?  

Isso aconteceu em todo esse período de 40 anos. A gente se acostumou a ouvir e falar da falta de escolas e toma um susto quando se depara com essa situação. Elenquei os argumentos da época para isso: a falta de uma pedagogia, a falta de uma sociologia, o preconceito expresso no conceito de “incúria”, a questão das distâncias dos caminhos, a falta de casas adequadas para funcionamento, a falta de professores e de professores habilitados e a desconfiança sobre ações do Estado. 

Faltou explorar as relações econômicas do regime de mão-de-obra da época. 

 Blog da EdUERJ: Você acredita que os problemas da educação do período estudado tenham ainda similaridades com os do cenário atual?   

Além da falta de crianças, salta aos olhos a falta de professores, tanto habilitados como não habilitados. É bom olhar para o passado e abrir os olhos para o presente e o futuro: caminhamos nessa mesma situação para pior. Olhar para o passado no qual se dizia que o professor era pouco reconhecido e valorizado, era mal remunerado, trabalhando em instalações improvisadas, carente de material didático-pedagógico… Nosso passado assombra nosso futuro! Às vezes digo que ainda vivemos questões do século XIX. 

A liberdade de ensino separou as escolas entre as gratuitas e as pagas determinando uma diferenciação social no interior da sociedade, em contraste com o modelo francês que copiava. Essa separação hoje salta aos olhos quando andamos pelas cidades, das grandes às menores… escola para o que tem dinheiro e para os que não têm: e isso é visível do prédio ao material escolar, do transporte ao destino dos estudantes de cada tipo de escola. 

Falta diálogo horizontal entre os que governam e administram os sistemas e os que fazem acontecer os objetivos dessa instrução escolar. Nesse sistema do XIX imperava a ideia da “razão de Estado” na qual tudo o que se oferecia estava em vistas do bem público promovido pelo Estado; hoje, pensamos que é um direito da pessoa. Lá não havia esse direito social. O direito social à educação só entra em pauta nos movimentos publicistas da década de 1920 e seguintes e ainda hoje são motivo de disputa. 

Acreditava-se que a instrução escolar modificava o destino das crianças. Ainda hoje se crê nisso. Isso é uma falácia! Virou um jargão bonito de se dizer! Não pretendo afirmar que a escolarização não modifica a vida das pessoas, mas pretendo dizer que isso não é uma verdade geral: não se aplica à grande parte da população, se não à sua maioria. A escola é uma produtora de fracasso também! 

O modelo escolar era o da Europa, das “grandes nações civilizadas”, como diziam à época. Ainda hoje o modelo continua o mesmo! Com todas as questões e diversidades que são introduzidas na educação escolar, o popular não se encontra nessa estrutura, na cultura e na ritualística institucional, na temática e no material didático-pedagógico, nessa estranha “máquina de entortar gente”, “Porque essa bela argila humana se estraga assim?” direi parodiando Saint Exupéry. É preciso olhar para nós mesmos, para nossa história, para nossa diversidade social e cultural, celebrar a convivência da pluralidade que nos torna únicos e a partir desse reconhecimento, promover uma educação que nos transforme sem nos negar.  

Blog da EdUERJ: Por fim, qual leitor você espera alcançar com o lançamento de Um sistema provincial de ensino no XIX? 

Esperar alcançar um público enorme é um sonho de Ícaro. Perto do sol nossas asas derretem! 

Em primeiro lugar, o texto deve interessar a um público especializado na pesquisa em história da educação e na história do Brasil. Em segundo lugar, aos que militam no ensino da história e não somente da história da educação. Àqueles que vêm no XIX um nó histórico ainda não devidamente desatado. Ao público em geral que ama a história, o conhecimento e possa se reconhecer nessas letras. 

Eu gostaria que as pessoas que atuam na gestão pública da educação escolar, especialmente nos governos eleitos, conhecessem nossa história. Conhecessem de fato, de corpo e mente. As disputas são boas fontes de conhecimento e de marcha política, mas precisamos de um norte de bússola, não um norte que se finca aqui ou ali. Precisamos de um projeto de futuro. Eu falo de 150 anos atrás: o que esperar de 150 anos à frente? Creio que esse horizonte ainda está na utopia, naquele “exato” lugar algum. Digo isso enquanto não perceber que o horizonte nos retorne a nós mesmos e não outro povo que não somos.