O evangelho de Homero: por uma outra história dos Estudos Clássicos debate o lugar da literatura de Homero na antiguidade clássica e no mundo contemporâneo. A publicação, fruto de uma minuciosa investigação sobre a história dos Estudos Clássico, é um convite para pensar a relação entre cânone literário e seus valores nos aspectos da educação e cultura. Em entrevista ao Blog da EdUERJ o autor Rafael Guimarães Tavares da Silva, falou sobre temáticas presentes na obra e compartilhou um pouco sobre seu processo de pesquisa.
Blog da EdUERJ: Como você analisa a proposta do livro, ao relacionar o papel de Homero nos estudos da Antiguidade com disputas e debates contemporâneos?
A ideia é compreender temas e debates contemporâneos, como identidade, representação, cânone e cancelamento, a partir de um campo de estudos — as Clássicas — e uma tradição literária — os clássicos. Nesse sentido, a escolha de Homero não é gratuita: clássico dos clássicos, Homero tem lugar de destaque tanto na forma como a história desse campo de estudos é contada quanto na compreensão do sistema literário e suas estruturas. A meu ver, é preciso entender que obras antigas e tradicionais não são apenas criações do passado, mas continuam engendrando novos sentidos ao longo do tempo. Poemas como a Ilíada e a Odisseia ensejam novas leituras em novos contextos, desde a Atenas clássica até os EUA contemporâneos, passando por Alexandria, Roma e tantos outros momentos da história literária. A produtividade do passado no presente abre-se para o futuro, e é nessa linha que proponho abordar a poesia homérica e o legado clássico de modo geral.
Blog da EdUERJ: O que o motivou a escrever sobre esse tema? E como surgiu a ideia?
Comecei a estudar esse tema devido a uma inquietação com a falta de prestígio dos clássicos na educação contemporânea. A história do ensino no Brasil, entendido aqui como um estado moderno “ocidental” (de matriz europeia), tem no cultivo do latim e da cultura romana um de seus pilares. Basta ler autores como Gregório de Matos, Antônio Vieira e qualquer um dos árcades para se perceber a centralidade do clássico romano na cultura brasileira mais recuada. Isso é válido não apenas para o período colonial, mas também para muito do que se dá após a Independência: com o conhecimento cada vez mais disseminado da cultura helênica, autores brasileiros dos séculos XIX e XX, como José de Alencar, Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa encontram nos clássicos greco-romanos um diálogo produtivo para a criação de suas obras. Isso foi possível devido à centralidade que tinha na educação brasileira a língua e a literatura latinas, assim como — em menor medida — também a língua e a literatura gregas. O Novo Testamento, tanto em sua língua original quanto na tradução de Jerônimo para o latim, também desfruta de um prestígio que explica o cultivo dessas línguas e suas literaturas por parte dos responsáveis pela educação de um país majoritariamente cristão.
De uns tempos para cá, contudo, essa situação se altera: com as reformas educacionais da década de 1960, durante o período da ditadura cívico-militar, o latim deixa de ser obrigatório nos currículos escolares; na década de 1990, sob o impacto do neoliberalismo, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) retira a obrigatoriedade do latim nos cursos de Letras. Essas mudanças são sintomas também de mudanças socioculturais mais amplas e profundas. Interessei-me pelo tema, mas não de uma perspectiva saudosista ou conservadora: quando comecei a ler sobre isso, vindo a descobrir o subgênero dedicado à “história dos Estudos Clássicos”, eu queria entender uma forma de reagir àquilo que se revelava para mim uma “crise”. O que descobri me permitiu compreender a situação de forma mais complexa, tanto no que diz respeito a uma problematização do legado clássico ao longo da história, quanto nas especificidades dos debates culturais contemporâneos. Dessas reflexões entendi dois pontos importantes, apesar de potencialmente paradoxais: os clássicos sempre estiveram em crise; o Brasil nunca viveu um momento tão pulsante em seu diálogo produtivo com os clássicos. Com isso, não quero dizer que não haja espaço para avanços, apenas que analisar uma dada situação de forma complexa nos permite evitar posições ingênuas. É possível tornar os clássicos cada vez mais significativos nos dias de hoje, mas para isso precisamos nos abrir às potencialidades do ensino, da pesquisa e da extensão (em termos universitários), sem descurar da produção cultural mais ampla, por meio de literatura, música, teatro, cinema e séries. Nesse sentido, os aportes da recepção clássica — ramo da estética da recepção com aplicação ao campo dos Estudos Clássicos — tem um potencial infindável.
Blog da EdUERJ: Como foi o processo de pesquisa para este livro? Houve algum aspecto ou descoberta que o tenha chamado particularmente a atenção?
A pesquisa se deu no âmbito de um projeto de doutorado que executei na UFMG, sob orientação dos Profs. Teodoro Rennó Assunção (UFMG) e Nabil Araújo (UERJ). Muitas descobertas realizadas durante as leituras para a escrita dessa tese de doutorado me impressionaram: em primeiro lugar, a importância do contexto histórico que se chama de culture wars na conformação de vários debates contemporâneos (políticos, educacionais, socioeconômicos etc.); a existência de um subgênero erudito dedicado a estudar a história dos Estudos Clássicos; a centralidade de Homero tanto na historiografia dessa área quanto na compreensão do sistema literário “ocidental”; a existência de fatores ideológicos por trás da institucionalização de disciplinas modernas, como a Ciência da Antiguidade, os Estudos Literários etc. A forma como essas questões aparecem profundamente conectadas para quem queira refletir hoje sobre clássicos (o cânone) e Clássicas (o campo de estudos) também se revela uma descoberta desta pesquisa.
Blog da EdUERJ: Como você vê a relevância da literatura homérica nos dias de hoje? Você considera um autor que ainda merece ser lido?
A relevância de Homero nos dias de hoje tem relação com sua centralidade para a história da literatura e da cultura no “ocidente” como um todo. Digo “ocidente” entre aspas porque essa noção está longe de ser inequívoca e constante, mas é uma construção histórica atravessada por tensões e ambiguidades. Em todo o caso, para um país como o Brasil, de colonização europeia, a relevância de Homero tem relação com a posição que suas obras ocupam na institucionalização moderna da literatura brasileira, em suas relações com a portuguesa e a europeia de modo geral, fazendo parte disso não apenas os elementos estéticos, éticos e epistemológicos do referencial cultural helênico, mas também as implicações ideológicas, morais e sociopolíticas de sua implementação num contexto de dominação colonizadora. Nesse sentido, há muitos aspectos incríveis desses poemas antigos que merecem ser estudados com atenção nos dias de hoje, capazes de deslocar nossas convicções modernas e indicar meios alternativos de compreensão da realidade. Por outro lado, é preciso certo senso crítico na abordagem desse material, para se evitar uma idealização simplificadora, responsável por retroprojetar na obra antiga categorias anacrônicas. O que meu livro se propõe a fazer é contar a história da construção que faz com que Homero seja Homero e os clássicos, clássicos. Trata-se, portanto, de desnaturalizar a ideia de valor em si (estético, literário, filosófico, cultural), a fim de inserir a cultura na história, com suas disputas políticas, seus interesses etc.
Blog da EdUERJ: O livro menciona o “pretenso cancelamento” de Homero e movimentos como o #DisruptTexts. Debates como esse são recentes, ou sempre existiram e o contexto das mídias sociais permitiu uma visibilidade/ascensão deles?
De certa forma, o cancelamento como estratégia de (não) leitura de textos e autores sempre existiu. Isso explica porque obras antigas de valor artístico inquestionável não foram transmitidas de forma integral até os dias de hoje, como são os casos de Arquíloco e Safo, por exemplo. A particularidade de campanhas como #DisruptTexts e outras estratégias contemporâneas é que elas mobilizam grandes massas reunidas em torno de uma agenda política explicitamente colocada contra referências canônicas. Nesse sentido, as mídias sociais funcionam como caixas de ressonância que amplificam debates literários, culturais e educacionais até então restritos a poucos. Isso democratiza a discussão, por um lado, enquanto traz o risco de simplificações. A ignorância quanto a certos pressupostos importantes para as áreas envolvidas nesses debates pode levar a posicionamentos frágeis, quando não contraditórios, por parte de pessoas sem qualquer formação para abordar esses problemas. Ainda assim, cumpre notar que esse tipo de risco potencialmente sempre existiu, ainda que hoje seja mais amplo e disseminado. A cultura não é um paraíso calmo e tranquilo, mas uma arena de disputas, embates e negociações. A forma como pensadores antigos do calibre de um Heráclito, um Xenófanes e mesmo um Platão se posicionaram contra Homero indica que sempre existiram aqueles dispostos a “cancelar” um autor por motivações morais, estéticas, epistemológicas e/ou políticas.
Blog da EdUERJ: Na sua visão, que papel as universidades e os currículos têm nesse debate sobre preservação, reformulação ou substituição do cânone?
O papel das universidades é enorme. Principalmente enquanto centros formadores de professores, as universidades determinam os conteúdos e metodologias a serem adotados nas escolas de ensino fundamental e médio. Além disso, atualmente as universidades colaboram na formação de muitos autores, jornalistas e intelectuais públicos, encarregando-se de refletir sobre questões candentes para a contemporaneidade, como representação, identidade, reconhecimento, direitos sociais etc. Nesse sentido, as referências culturais — canônicas ou não — devem ser discutidas, a partir das estruturas que implicam em sua seleção e/ou sua exclusão, por parte dos pesquisadores e professores universitários, especialmente das áreas de Letras, Filosofia, História, Educação e outras afins.
Blog da EdUERJ: Que leitores você espera alcançar com essa publicação?
O público que tenho em mente com essa obra é formado por pessoas interessadas em discussões culturais, especialmente as de viés literário, a partir de diálogos com a antiguidade greco-romana, ainda que não numa chave de reverência irrefletida. A proposta traz aportes para debates sobre Literatura, entre teoria e história da crítica (por isso, inclusive, sua inclusão na coleção “Universos da crítica”, da EdUERJ). Em vista da abrangência de assuntos tratados, a obra deve interessar, portanto, de forma mais ampla a estudiosos e curiosos das áreas de Clássicas, Letras, História, Filosofia e Educação.
Entrevista por Beatriz Araujo, estagiária de jornalismo.




