Em um momento em que muitos bairros do Rio de Janeiro estão atravessando uma crise de abastecimento de água, faz-se cada vez mais necessária uma conversa sobre a questão hídrica, com um enfoque em desenvolvimento sustentável. Para falar sobre o tema, convidamos o professor Adacto Benedicto Ottoni, autor do livro “A importância do saneamento integrado e sustentável para viabilizar o combate à crise hídrica: o caso das bacias do Guandu e Paraíba do Sul”, lançamento de 2024 da EdUERJ. Ottoni é professor do Departamento de Engenharia Sanitária e do Meio Ambiente da UERJ. A entrevista foi concedida por email.
A manutenção anual do sistema Guandu, realizada pela Cedae, é planejada e comunicada previamente à população. No entanto, a interrupção resultante causou desabastecimento prolongado em muitos bairros. Como você analisa esse panorama atual em que tantos bairros ficaram sem água? Essa situação poderia ter sido evitada?
Existe um grande problema na água bruta captada pela CEDAE no rio Guandu, que é a qualidade das águas da Lagoa do Guandu, que está bastante eutrofizada (produção de macrófitas e fitoplâncton), devido ao lançamento de poluição orgânica (lixo e esgotos) proveniente de Queimados e Nova Iguaçu. Uma parte importante da manutenção anual do sistema Guandu é fazer a retirada desse material biológico da Lagoa do Guandu, visando melhorar a qualidade da água bruta captada pela CEDAE no rio Guandu. Boa parte desse problema poderia ser evitada se houvesse a priorização no saneamento de esgotos e resíduos sólidos em Queimados e Nova Iguaçu, com soluções emergenciais e de médio prazo, dando mais segurança hídrica ao abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Além disso, aproximadamente 90% das águas do rio Guandu vêm por transposição de vazões da bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, que é um rio bastante degradado e cuja bacia possui elevado grau de desmatamento. Portanto, para se garantir mais segurança ao abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro é prioritário se rever as políticas públicas para a recuperação ambiental efetiva das bacias hidrográficas dos rios Guandu e Paraíba do Sul. Nova Iorque priorizou este tipo de solução, implantando um importante programa de “Produtores de Água” na bacia hidrográfica dos seus mananciais hídricos, regularizando as vazões dos rios e melhorando sua qualidade de água, o que barateou o tratamento e reduziu as tarifas de águas pagas pela população. O que deve ser priorizado é a melhoria da qualidade e da regularização de vazões dos rios Guandu e Paraíba do Sul, a partir do incremento da recarga das águas de chuva no período chuvoso do ano hidrológico, e o controle efetivo da poluição de origem pontual e difusa, dando mais segurança ao abastecimento de água e saúde à população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O desabastecimento prolongado em vários bairros pode ter sido causado por rompimentos de adutoras de água, onde deve se fazer uma perícia para se avaliar com precisão as causas desses problemas.
Como você avalia a capacidade das concessionárias e da Cedae em lidar com os desafios estruturais para evitar crises futuras?
As concessionárias de saneamento têm de garantir a qualidade dos serviços prestados. Os recentes problemas de falta de água no Rio de Janeiro devido ao rompimento de adutoras de água podem ser devido a 3 fatores principais: 1- Tubulações antigas e que apresentem problemas de incrustações em suas paredes, aumentando a rugosidade e reduzindo a espessura das paredes da tubulação. Para reduzir esse problema, deve ser feito de forma urgente uma perícia nessas tubulações, definir-se as regiões críticas dessas tubulações antigas, e trocá-las; 2- Pressões elevadas nas adutoras de água. As pressões máximas em uma adutora de água não podem ultrapassar 45 a 60 metros de coluna de água (m.c.a.), o que pode levar a vazamentos de água dessas tubulações. Para se evitar ou reduzir sensivelmente este problema, as concessionárias devem implantar um sistema de monitoramento ambiental piezométrico sensorizado dessas tubulações e corrigir o problema das altas pressões na rede daqui pra frente, prevenindo o rompimento das adutoras; 3- Ocupações irregulares sobre as tubulações de água da concessionária, o que pode gerar riscos de rompimento. Esse problema pode ser bastante minimizado a partir de uma fiscalização efetiva na rede evitando intervenções irregulares da população que possam colocar em risco as tubulações de água. Esses 3 problemas podem ocorrer separadamente ou de forma conjunta, o que agrava ainda mais o risco de rompimento das adutoras de água.
Considerando que a Cedae opera o sistema de produção e as concessionárias são responsáveis pela distribuição, como essa relação pode ser aprimorada para garantir maior eficiência e transparência no fornecimento de água?
É fundamental que haja um processo de licenciamento e fiscalização ambientais eficientes nos processos do sistema de produção (operado pela CEDAE) e de distribuição (operado pelas concessionárias), para dar garantia de uma boa operação dessas atividades de abastecimento de água sem prejudicar a população e visando garantir a sustentabilidade ambiental de todo o sistema.
Diante de desafios como crescimento populacional e eventos climáticos extremos, quais seriam as soluções de médio e longo prazo para assegurar uma gestão sustentável do abastecimento hídrico na região metropolitana do Rio de Janeiro?
É fundamental se priorizar:
a) a recuperação ambiental dos mananciais hídricos, que hoje se encontram bastante degradados.
b) Deve-se também garantir um crescimento urbano e rural ordenado, preservando-se e recuperando-se as áreas verdes, controlando-se as erosões do solo e ampliando-se as recargas subterrâneas das águas de chuvas. Isso vai reduzir as enchentes no período chuvoso do ano hidrológico e maximizar as vazões hídricas fluviais nos períodos de estiagem do ano hidrológico. Deve-se regular o crescimento da área urbana às disponibilidades hídricas disponíveis na bacia, para se evitar um colapso no abastecimento de água para o futuro.
c) Além disso, deve-se implantar políticas públicas para controlar a poluição dos mananciais hídricos a partir de uma gestão sustentável e integrada do saneamento básico, dentro do conceito da economia circular; deve-se priorizar o reaproveitamento do lodo dos esgotos orgânicos e dos restos de comida dos resíduos sólidos como composto orgânico, para baratear a recuperação do solo e o reflorestamento (reduzindo enchentes fluviais e aumentando as vazões mínimas dos rios), e priorizar o reúso dos esgotos tratados; essas medidas protegem os mananciais hídricos e viabilizam economicamente o saneamento básico em suas 4 vertentes (abastecimento de água, drenagem, saneamentos dos esgotos sanitários e gestão de resíduos sólidos).
d) a melhoria dos processos de licenciamento e fiscalização ambientais dos empreendimentos potencialmente impactantes nas bacias hidrográficas dos mananciais hídricos, incluindo processos de monitoramento ambiental eficientes e representativos dos processos operativos desses empreendimentos;
e) Se implantar um programa de monitoramento ambiental permanente hidrométrico e de qualidade de água dos rios e por georeferenciamento do uso e ocupação do solo.
Para que essas metas sejam atingidas é fundamental que se aprimorem as políticas públicas para a gestão sustentável de fato das bacias hidrográficas dos mananciais hídricos e que garantam uma atuação eficiente e efetiva das concessionárias responsáveis pelos serviços de abastecimento de água para a população na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.