Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX, de Márcio Couto Henrique, lançamento da Editora da UERJ, certamente vai surpreender aqueles que enxergam a etnia indígena sob o véu do estereótipo racial. Da pesquisa, emerge o índio como indivíduo que elabora suas estratégias de embate ou políticas de aliança, em momentos marcantes da sociedade brasileira. A iniciativa da pesquisa sobressai-se ainda mais se levarmos em conta a lacuna sobre o tema na maior parte dos livros de história.
O panorama da pesquisa é a Amazônia do século XIX, período posterior ao da atuação do padre Antônio Vieira ou do Marquês de Pombal, personagens que dialogavam com a causa indígena. Na época, “os missionários tratavam os índios como crianças que precisavam ser protegidas ou incapazes de superar a estaca zero da evolução sem a proteção dos civilizados”. Os capítulos demonstram uma realidade divergente do que supunham esses religiosos.
O autor traz à tona fatos como a participação dos índios Munduruku na condição de aliados das tropas legalistas no episódio conhecido como Cabanagem. Essa revolta, ocorrida entre 1835 e 1840 na província do Grão-Pará, causou mais de 30 000 mortes e inúmeros estragos. A parceria com os índios foi vital para que pudesse ser retomada a atividade dos missionários.
Em outro capítulo é enfocada a reação dos nativos às tentativas de catequese, conduzidas muitas vezes a partir de uma aproximação amistosa, com oferecimentos de presentes e a designação de um responsável pela cristianização da tribo. Havia também o interesse de tentar intervir na distribuição geográfica das tribos. A proposta de realocamento atendia à ideia de uma futura inserção dos nativos como mão de obra barata. Outra motivação era o fato de os índios serem considerados ameaça à navegação em determinadas áreas. Contrariando a regra, em algumas ocasiões os colonizadores é que foram solicitados a possibilitar a mudança. Por exemplo, como procedeu membros da tribo Pariqui, ansiosos por afastarem seu local de habitação da região dominada por uma tribo de costumes antropófagos.
O ponto de vista dos indígenas foi investigado, por meio de relatos, livros e uma documentação composta principalmente por relatórios dos presidentes das províncias, correspondência dos missionários e obras dos viajantes. O desafio maior foi reconhecer a perspectiva indígena, às vezes presente apenas nas entrelinhas, principalmente quando se trata de relatos oficiais.
O autor aponta para a necessidade de se superar a concepção de que os “índios foram vítimas indefesas da colonização ou assistiram passivamente à ação histórica dos europeus”. Essa suposta inferioridade ou incapacidade deixou marcas e até hoje encontra ecos em determinados setores da nossa sociedade, justificando violências ou diretrizes autoritárias contra os índios que atualmente sobrevivem no (ao?) Brasil.