O Blog da EdUERJ entrevistou Luca Manucci, doutor em Ciência Política pela Universidade de Zurique e pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Manucci é o organizador do livro “Sobre o populismo: entrevistas com especialistas”, publicado no Brasil pela EdUERJ, com tradução de João Marcos E. D. de Souza.
Blog da EdUERJ: O populismo é um termo usado com frequência no debate público, mas nem sempre com clareza. Você pode explicar o que caracteriza, de fato, esse fenômeno político?
O populismo é como um espelho distorcido: ele reflete a política em um “nós contra eles”. Basicamente, divide o mundo entre “o povo puro” e “a elite corrupta”. O populista afirma que só ele ou seu movimento representam a voz verdadeira do povo. Não é apenas um discurso — é uma forma de organizar o mundo em histórias simples, com heróis e vilões. E assim como em Star Wars, essa narrativa pode vir do lado da luz ou do lado sombrio: o fio condutor é sempre a promessa de falar em nome do povo, mas os objetivos podem ser muito distintos.
Blog da EdUERJ: O populismo costuma ser associado à extrema direita. Mas ele é, necessariamente, de direita? Por que essa associação é comum?
Não. O populismo pode se manifestar em diferentes espectros: na direita, na esquerda e até em versões mais centristas. A associação com a extrema direita se intensificou porque figuras como Trump, Bolsonaro, Orbán e Le Pen dominaram os noticiários. Mas também há populismos de esquerda, como os de Evo Morales, Chávez, o Podemos na Espanha ou o Syriza na Grécia. O populismo é como uma melodia que pode ser tocada com diferentes instrumentos ideológicos — o que muda é quem é retratado como “o povo” e quem são os inimigos.
Blog da EdUERJ: No Brasil, tem se observado um discurso que nega a Ditadura Militar de 64 chamando-a de Revolução. Esse uso seletivo da memória e a idealização do passado tem relação com estratégias populistas?
Sim, totalmente. Populistas frequentemente atuam como editores da memória coletiva, cortando e remontando o passado para que ele sirva ao presente. Essa manipulação constrói a ideia de que “o povo” foi traído e precisa retornar a uma era mítica. O populismo de direita, em especial, é marcado por uma nostalgia idealizada dos “bons velhos tempos”, muitas vezes relacionada a períodos autoritários, apresentados como épocas de ordem e estabilidade. Essa nostalgia estimula ressentimento contra minorias, mulheres, ambientalistas — vistos como os que “quebraram” a ordem. O passado, nesse caso, é menos história e mais ficção política. Os “bons velhos tempos” têm significados diferentes para pessoas diferentes, mas para os apoiantes da extrema-direita eles podem ser identificados em um passado glorioso – baseado no revisionismo histórico. Por todas essas razões, a ideia do passado idealizado pelos atores da extrema-direita muitas vezes ecoa um passado autoritário em que a sociedade se baseava em valores tradicionais que foram perdidos.
Blog da EdUERJ: O avanço da inteligência artificial junto da mediação da vida contemporânea pelas redes sociais pode moldar uma nova fase do populismo?
Sim. As redes sociais já tornaram o populismo mais direto, emocional e viral. Com a inteligência artificial, esse processo ganha uma nova dimensão: discursos podem ser moldados sob medida, reforçando crenças e medos de forma quase invisível. É como estar dentro de um episódio de Black Mirror, onde o que vemos foi programado para nos manter dentro de bolhas, confortáveis e indignados ao mesmo tempo.
Blog da EdUERJ: O populismo precisa da figura de um líder?
Não necessariamente, embora líderes carismáticos sejam uma marca comum. Alguns movimentos funcionam como um coral de vozes, mas é a figura do líder que dá intensidade, coerência emocional e narrativa ao discurso. Ele é como um maestro: sem ele, a orquestra pode até continuar tocando, mas perde a harmonia e o impacto.
Blog da EdUERJ: Um populismo considerado extremo pode abrir caminho para regimes políticos antidemocráticos e autoritários?
Sim. O populismo extremo costuma usar a democracia para enfraquecê-la por dentro. Ao se apresentar como o único verdadeiro representante do povo, ele deslegitima instituições, oposição e pluralismo. É como se, em um jogo de futebol, o goleiro decidisse jogar sozinho, ignorando todas as regras. A história mostra que esse caminho costuma levar a formas de governo autoritárias.
Blog da EdUERJ: Agora falando sobre o livro “Sobre o populismo”. Como o próprio título indica, o livro apresenta entrevistas com especialistas sobre o populismo. De que forma surgiu a ideia de compilar essas entrevistas em uma única publicação?
A ideia surgiu do blog POP (Political Observer on Populism), onde eu já publicava entrevistas com especialistas desde 2015. Com o tempo, percebi que essas conversas, se organizadas em um só volume, poderiam funcionar como um mapa para quem quer entender esse fenômeno global. O livro é composto por uma seleção de algumas entrevistas já publicadas no blog, que foram adaptadas e atualizadas, além de uma maioria de entrevistas realizadas ad hoc.
Blog da EdUERJ: Como foi para você, como cientista político, assumir o papel de entrevistador neste livro?
Foi como trocar a cadeira de palestrante pela de ouvinte. Entrevistar esses especialistas me permitiu aprender diretamente com as maiores referências sobre populismo. No fundo, foi um exercício de humildade e curiosidade: abrir espaço para que diferentes vozes desenhassem um quadro complexo, mas acessível.
Blog da EdUERJ: Considerando que no livro, os especialistas entrevistados falam de um tema em comum, sob pontos de vista diferentes, as conversas se interligam de alguma forma?
Sim. Embora cada entrevista tenha vida própria, elas se conectam como episódios de uma série antológica — como True Detective. Cada especialista aborda o populismo por um ângulo diferente, mas todos ajudam a montar um quadro maior: os desafios da democracia, os riscos da polarização, o papel das emoções, da mídia e da história na política contemporânea.
Blog da EdUERJ: Há indícios de novas características emergentes no populismo atual? Algo que a sua pesquisa mais recente vem observando?
Sim. As novas ondas populistas estão cada vez mais digitais, explorando redes sociais e a lógica do algoritmo. Além disso, temas como mudanças climáticas, teorias da conspiração e até pandemias estão se tornando campos férteis para discursos populistas. É como se o populismo fosse um camaleão, sempre se adaptando ao Zeitgeist do momento. E mais: muitos atores populistas hoje não apenas disputam eleições, mas tentam transformar o próprio jogo democrático — esvaziando freios e contrapesos, cancelando o pluralismo e se colocando como os únicos intérpretes legítimos da vontade popular. É uma erosão interna da democracia.
Blog da EdUERJ: Pessoas que não estão inseridas em um contexto acadêmico ou que não sabem muito sobre o assunto também podem se beneficiar da leitura de “Sobre o populismo”?
Sem dúvida. O livro foi pensado justamente para atravessar os muros da academia. Como explico no prefácio, esta não é uma obra densa ou técnica, mas uma coleção de conversas que buscam clareza e diálogo: “o que importa aqui é a jornada e não o destino, e às vezes os desvios fazem parte da diversão”. É como uma boa roda de conversa: acessível, provocadora e cheia de conexões com temas atuais — da música às redes sociais, da religião à memória histórica. Essa diversidade de assuntos facilita a identificação do leitor com tópicos que já fazem parte do seu universo cultural. Além disso, o livro convida jornalistas, estudantes e curiosos a mergulhar no tema sem medo de “não entender” — afinal, o objetivo é despertar interesse, provocar perguntas e oferecer novas lentes para olhar o mundo.
Entrevista concedida a Beatriz Araujo.