O Blog da EdUERJ entrevistou Wagner Monteiro, professor de língua e literatura espanhola na UERJ e tradutor de “A novela do Curioso impertinente”, história extraída de “Dom Quixote”, obra clássica de Miguel de Cervantes. O livro é uma das novidades do catálogo da EdUERJ e será lançado no dia 18 de agosto na Livraria da EdUERJ – mais informações sobre o evento no final da entrevista.
Blog da EdUERJ: “A novela do Curioso impertinente” originalmente integra “Dom Quixote”. Qual a relação dela com a história principal da obra?
Não sabemos ao certo em que momento Miguel de Cervantes escreveu A novela do Curioso impertinente. Acredita-se que o texto é um pouco anterior à escrita do Dom Quixote e que foi introduzido na obra a posteriori. Também vale destacar que o Curioso impertinente mantém uma clara semelhança com as Novelas exemplares que, como se sabe, foram escritas em sua maioria na década de 1590. Isso para demonstrar que as novelas cervantinas apresentam uma autonomia, além de uma intenção e moral na própria estrutura desses textos. No entanto, o aparecimento do Curioso impertinente na primeira parte do Dom Quixote, a partir do capítulo XXXIII, tampouco é em vão. Como destaca Hans-Jörg Neuschäfer, além da crítica à soberba do homem, Cervantes problematiza uma concepção idealista de relacionamento. Anselmo e Dom Quixote compartilham de uma visão idealista sobre diferentes temas e são impactados pelo choque de uma realidade que se impõe inevitavelmente. Embora sempre ressaltemos que a primeira parte do Quixote é mais aventureira, enquanto a segunda é mais reflexiva, A novela do Curioso impertinente sublinha a preocupação de Cervantes com sentimentos como o delírio, a loucura e o desejo.
Blog da EdUERJ: Na sua opinião, Anselmo, protagonista da novela, compartilha alguma semelhança com Dom Quixote?
Tanto Anselmo quanto Dom Quixote – e poderíamos acrescentar aqui Emma Bovary – são personagens absurdamente insatisfeitos. A realidade, ainda que se mostre agradável, serena, não é suficiente para quem pretende explorar os limites daquilo que se impõe como única possibilidade de atuar no mundo real. A loucura, nesse sentido, é um sintoma de insatisfação, e parece despropositada em um contexto de absoluta serenidade. Anselmo na Toscana, Alonso Quijano em La Mancha, e Emma na Normandia, deliram porque projetam e buscam incessantemente o mundo ideal. Penso, ainda, que Cervantes constrói tanto em Anselmo, como no Dom Quixote, personagens com profundidade psicológica e que apresentam uma linguagem elaborada. Lotario está para Anselmo como Sancho Pança para o Dom Quixote, e narrativas cuja força está no diálogo, na arte do convencimento. Sancho é convencido de que poderá governar a Ínsula Barataria, já Lotário de que não há maior prova de amizade e fidelidade a Anselmo que poder ser partícipe do plano que coloca Camila à prova.
Blog da EdUERJ: Na trama, o protagonista Anselmo, atormentado por dúvidas sobre a fidelidade de sua jovem esposa, Camila, resolve testá-la com seu melhor amigo, Lotário, e os fatos desencadeados fogem de seu controle. Podemos interpretar que já naquela época, o texto faz uma certa crítica à forma como o amor romântico é idealizado pela sociedade?
Não acredito que na Espanha do XVII houvesse uma ideia de amor romântico como temos hoje em dia. No entanto, a crítica que o texto projeta está muito mais relacionada ao choque entre idealismo e realismo. Se pensarmos, por exemplo, no quadro de Rafael Sanzio, Scuola di Atene (1509-1511), em cujo centro vemos filósofos antigos – representação de Aristóteles e Platão – apontando para cima e para baixo, há um contraponto entre esses dois polos na novela de Cervantes, mas teoricamente ainda de forma pacífica. Cervantes discute a fragilidade entre o que se apresenta como “real” ou “ideal”, pois a fronteira não é tão estável como aparece. Como mencionamos em nossa edição, Cervantes revela que o amor é um construto discursivo, pois tudo está no plano da linguagem. Anselmo caminha entre dois polos na narrativa. Embora se configure como um arquétipo de homem idealista, o protagonista da novela é consciente, como homem de seu tempo, que ninguém nasce predestinado a amar, mas que pode ser convencido por meio da linguagem a amar de outro modo e um outro alguém.
Blog da EdUERJ: Mesmo sendo uma obra antiga, você acredita que A Novela do Curioso Impertinente consegue dialogar com questões contemporâneas?
Sem dúvida. Tanto a curiosidade, como a impertinência, são temas universais e que não envelhecem, pois constituem o ser humano. Também é relevante pensarmos nos desejos de Camila, personagem feminino que se transforma ao longo da narrativa. Se no início há uma devoção irrepreensível ao marido, ao longo da trama a personagem liberta seus desejos e se entrega a Lotário. Vemos, deste modo, uma insubordinação à própria ideia de casamento cristão, cuja base está na promessa de amor eterno, tendo em vista que Camila se sente desamparada pelo marido. Se essa atitude nos parece lógica a partir da perspectiva do século XXI, devemos pensar, no entanto, que na Florença do início da Idade Moderna o casamento era uma instituição sagrada. Camila deveria, portanto, ser testada e não cair em tentação em hipótese alguma. Portanto, o papel da mulher nessa sociedade absolutamente patriarcal é um tema que adquire contornos diferentes e se atualiza com a nossa leitura contemporânea. Nas aulas de literatura espanhola barroca na UERJ, não apenas a conduta de Anselmo, como a de Camila, sempre gera debates acalorados entre os alunos.
Blog da EdUERJ: Você considera que a leitura desta novela, separadamente do texto de Dom Quixote, altera a experiência do leitor com a narrativa?
Penso que a leitura do Curioso impertinente separadamente do Dom Quixote possibilita uma experiência de leitura muito mais focada nas particularidades desta novela, que poderia ser facilmente definida como “exemplar”. O que quero dizer é que assim como podemos ler separadamente cada novela exemplar de Cervantes, focando nos temas e no luxo novelesco que apenas o autor espanhol é capaz de proporcionar, também podemos desfrutar da novela de O curioso impertinente tendo em vista aspectos inerentes a sua própria estrutura. A leitura do Curioso impertinente como parte do Dom Quixote produz no leitor uma sensação de que deve produzir sentido a partir de um contraponto com a história do engenhoso fidalgo. A leitura isolada concede autonomia ao Curioso impertinente e permite um foco maior no triângulo amoroso criado por Cervantes.
Blog da EdUERJ: Integra o livro, um capítulo chamado “Questões teóricas e práticas sobre tradução”, assinado por você e Andrea Cesco (também tradutora do livro), que diz que a responsabilidade do tradutor vai além de buscar uma cópia fiel do texto original. Como essa ideia se aplica, na tradução dessa novela, por exemplo?
Tanto Andrea Cesco como eu compartilhamos uma visão de que a tradução produz uma nova forma de vida – seguindo o que Mauricio Cardozo propõe. Isto significa que o texto traduzido é o produto de um trabalho de muita pesquisa do universo de Miguel de Cervantes, de sua literatura, dos diálogos que o autor traçava, mas que não deixa de apresentar a criatividade dos novos autores deste texto, no caso, os tradutores. Projetamos, assim, um texto autônomo, mas sem deixar de lado a reciprocidade que a tradução sempre deve manter. Embora o leitor brasileiro tenha acesso a uma tradução realizada por Andréa Cesco e Wagner Monteiro, ele está, ao mesmo tempo, lendo o texto de Miguel de Cervantes. Portanto, cada palavra, cada linha do texto do escritor de Alcalá de Henares foi traduzida a partir de uma ideia de autonomia e de reciprocidade, mas também de enorme reverência ao que foi escrito por Cervantes.
Blog da EdUERJ: É muito desafiador traduzir uma obra do século XVII?
Sem dúvida. A Andrea Cesco e eu traduzimos textos literários do século XVII há alguns anos. Ela vem trabalhando especialmente com Francisco de Quevedo e eu com Lope de Vega. Podemos constatar que a enorme distância temporal e o hermetismo da literatura barroca constituem enormes dificuldades para qualquer tradutor. No caso de um texto de Miguel de Cervantes, como a novela do Curioso impertinente, embora se configure como aquilo que o autor denomina modesto entretenimento, a linguagem é bastante rebuscada. Nosso principal desafio é manter características da literatura do XVII, com uma linguagem palatável para o leitor brasileiro do século XXI, mas sem romper com a ideia de enigma que é fundamental na constituição da literatura daquela época. Portanto, embora o trabalho com dicionários espanhóis do século XVII seja fundamental, não é menos relevante um enorme conhecimento da língua portuguesa para poder alcançar em certa medida um trabalho com a linguagem que autores seiscentistas atingiram.
Blog da EdUERJ: E para você, qual é a relevância de novas edições de clássicos, como esta, que apresentam textos adicionais e uma tradução inédita?
Esta edição é uma excelente oportunidade para que o leitor brasileiro conheça mais a fundo a obra de Miguel de Cervantes. Diferentemente de outras edições, a novela do Curioso impertinente está saindo de forma bilíngue, com o olhar de diferentes especialistas dos estudos literários. A edição produzida pela EdUERJ é cuidadosa, fruto da pesquisa e do trabalho de especialistas da área, que conhecem a obra de Miguel de Cervantes e propuseram um diálogo profundo entre o texto em espanhol e em português. A novela do Curioso impertinente não é, apenas, um texto sobre até onde a curiosidade pode nos levar, mas, sobretudo, sobre a retórica e as teias discursivas que a linguagem pode proporcionar. Cervantes será sempre clássico porque revela o que há de mais profundo na alma humana. Uma edição como esta, com textos adicionais e uma tradução inédita, tem o mérito de propor novos olhares críticos sobre um dos textos mais conhecidos da literatura espanhola, rejuvenescendo uma novela que tem mais de quatrocentos anos.
Entrevista concedida à Beatriz Araujo, estagiária de jornalismo
“A novela do Curioso Impertinente” será lançada em 18 de agosto, às 17h, na Livraria da EdUERJ, no campus Maracanã. Na programação, haverá uma mesa com Wagner Monteiro, com o vice-diretor do Instituto de Letras da UERJ, Rodrigo Campos e com o editor-executivo da EdUERJ, Gustavo Bernardo.