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Uma conversa sobre feminismo, machismo e sociedade contemporânea

O Blog da EdUERJ conversou com Vanessa do Nascimento Fonseca, autora de “Precisamos falar com os homens? Colonialidade e estratégias de transformação das masculinidades”, livro publicado pela Editora da UERJ em 2023. Nessa entrevista, ela reflete sobre a importância de se buscar uma sociedade mais equânime, e aponta que “o machismo não está separado do racismo, do regionalismo, e tantos outros marcadores que usamos para classificar as pessoas”

O livro trata da inclusão dos homens no processo de combate a valores machistas. Como surgiu a ideia de produzir um trabalho com o tema?

Da minha própria trajetória acadêmica e profissional. As intervenções e pesquisas com homens para a equidade de gênero, no Brasil, começam a ganhar corpo, principalmente na década de 1990, quando surgiram organizações da sociedade civil que desenvolviam ações com a temática. Já em 1999, na minha primeira experiência em estágio e pesquisa na UFRJ, entrei em contato com o tema, por meio de colaboração para uma pesquisa internacional. O assunto me tocou e, pouco tempo depois, comecei a trabalhar em uma organização que desenvolvia projetos de pesquisa e de intervenções com homens, adaptando metodologias para a transformação das masculinidades em diferentes países, sobretudo do Sul Global. Foi meu trabalho no campo de mais de uma década, que me trouxe inúmeras indagações sobre o assunto, as quais busquei pensar na tese de doutorado

Você acredita que o machismo e o patriarcado sejam reforçados por valores relativos aos sistemas econômicos?

Feministas marxistas, sobretudo, e vários autoras/es decoloniais têm explicado de maneira importante e complexa a relação entre o patriarcado e o sistema capitalista e neoliberal. Grosso modo, tratam da relação estreita entre patriarcado, racismo e capitalismo como pilares da colonialidade, do uso do trabalho doméstico realizado por mulheres como condição para a exploração do trabalho dito produtivo, da desvalorização do trabalho de cuidado e de reprodução da vida, associado às mulheres, em benefício do trabalho produtivo, associado aos homens. Podemos pensar, por exemplo, a partir do que acontece nas crises econômicas. Sempre que uma economia vai mal, as mulheres são culpadas de abandonar os filhos e o lar, análise que ouvi certa vez de Flávia Biroli a respeito da onda conservadora brasileira. Eu penso, acompanhando diversas autoras que analisam os processos de produção de subjetividade contemporâneos, que o regime capitalista e a razão neoliberal atuam e se sustentam em processos de produção de masculinidades e feminilidades, em que aos homens (cis hetero brancos adultos…) atribui-se o domínio da razão, da prática política e pública, do trabalho fora do lar, e às mulheres (também variando a partir de certos marcadores sociais) destina-se a prática do cuidado com a vida, realizado de maneira gratuita, ou sem o valor devido. No livro eu cito bastante a Raquel Gutièrrez Aguilar, uma autora mexicana que, ao refletir sobre o movimento 8M e as violências contra mulheres, menciona que o patriarcado funciona como uma reiterada ação de drenagem e expropriação das energias criativas das mulheres, amalgamada com o capitalismo e a colonialidade. Nesse sentido, para que haja mudanças, precisamos intervir sobre esse modo de funcionamento, que aprisiona as saídas criativas para a nossa existência em modelos rígidos de ser, que, por seu turno, servem a regimes econômicos.

Como você define a importância da participação dos homens na causa feminista ?

Os homens fazem parte das relações sociais que precisam ser mudadas, constroem os regimes políticos e econômicos, têm grande poder nessa construção. Portanto, precisam também analisar seu papel na perpetração das desigualdades sociais, além das violências cometidas contra grupos minoritários e entre eles.

Quais estratégias você considera mais efetivas para estimular os homens a mudarem comportamentos nocivos?

É preciso tomar cuidado com receitas e modelos que prometem mudanças rápidas e superficiais de comportamento. É muito comum se requisitar a cartilha do homem transformado, ou descontruído. Mas, apesar de, em muitos casos, se oferecerem algumas pistas de mudança, modelos podem ser a reprodução do problema, ou seja, fazer com que aprisionemos em formas de como devemos ser, em vez de sustentar uma análise crítica de nossas posições nas relações. As transformações se baseiam no modo como nos relacionamos. É um exercício constante. Trata-se de uma perspectiva ético-político para a vida, em que o “entre nós” precisa ser analisado frequentemente, no sentido de construir uma relação justa, com base no cuidado consigo e com o outro. E isso precisa ser trabalhado nos diferentes espaços, das políticas públicas às práticas cotidianas; das relações nas empresas às relações familiares, nos serviços, etc. Os espaços de formação são fundamentais para esse exercício. A escola, na medida em que reflete as relações humanas, é um espaço potente para esse trabalho. É importante destacar que espaços para a reflexão de comportamentos são importantes, mas as mudanças devem ir além do nível individual. É preciso que haja interferências nas forças que apoiam o modo como nos relacionamos.

Quais foram as principais conclusões ou insights que você obteve durante o processo de escrita do livro, especialmente em relação à conscientização masculina

Acho que aprendi muito com as leituras e análises da minha própria prática. Mas, destacaria aqui que transformações são um processo e não um fim estabelecido de antemão, como modelos de homens transformados/ desconstruídos. É necessário sustentar uma análise crítica das relações. Além disso, o machismo não está separado do racismo, do regionalismo, e tantos outros marcadores que usamos para classificar as pessoas. Mas reconhecer isso vai além de se autoidentificar como homem cis-heterossexual branco, por exemplo. Todos os engajados nos processos de transformação das relações sociais precisam acompanhar e analisar suas posições nessas relações, ininterruptamente. Os homens precisam estar na luta para transformar a sociedade, mas realizando um exercício constante de análise sobre seus lugares nas relações sociais, com o fim de enfrentar relações de poder. Não se trata de pôr ênfase nas posições de vítima e algoz, herói ou vilão. Esses lugares podem nos fazer ignorar que o trabalho é coletivo. É importante pensar como se instituem as relações. Que práticas interferem nas possibilidades criativas de existência de cada um de nós, na nossa diversidade? É preciso refletir e agir sobre essas interferências, facilitando a vida, a diversidade humana, inclusive dos homens, que são cobrados por sustentar um modelo de masculinidade. Então, trata-se muito mais de uma ética do que um novo modelo a ser seguido. Experiências de vida, histórias de transformação e até algumas orientações de mudança são importantes como ferramentas e, como tal, precisam ser utilizadas conforme o contexto, atualizadas em cada prática, com cada grupo.

Como você avalia hoje o papel das iniciativas da sociedade civil na promoção da saúde e dos direitos humanos, em sintonia com a valorização da mulher?  Você acredita que o combate à violência contra a mulher e a luta contra discriminação de gênero já tenham o devido respaldo no âmbito da sociedade?

O trabalho da sociedade civil tem sido fundamental na promoção de críticas contundentes às relações e aos regimes sócio-político-econômicos, dando origem a uma série de políticas e leis fundamentais na garantia dos direitos dos grupos minoritários, incluindo as mulheres. A sociedade civil tem mostrado o quão fundamental é que relações mais justas e equânimes sejam promovidas para o alcance de melhor saúde, educação, renda, etc. Práticas inovadoras, baseadas nas condições e características do público de interesse, dos laços de solidariedade e das redes de apoio que se tecem localmente. No caso da violência contra mulheres, a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, entre instituições e práticas importantes de acolhimento são exemplos, assim como o trabalho com homens autores de violência, com muitas publicações e trabalhos consistentes a respeito do assunto. Tudo isso tem mobilizado transformações profundas. No entanto, além da reação conservadora atual a tais conquistas, que demonstra que muitas mudanças nas subjetividades ainda precisam ser feitas, os dados demonstram que precisamos caminhar muito. A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) divulgou recentemente que a diferença salarial entre homens e mulheres reduziu nos últimos 10 anos. As mulheres, que ganhavam 72% do salário dos homens, passaram a receber 78,11%. Isso, a despeito de 2 anos a mais de escolaridade. A mudança é positiva. Mas ainda é necessário mais. E se considerarmos a velocidade em que a mudança foi feita, precisaremos de mais 40 anos para haver paridade, de acordo com o estudo da CNI. Isso é só um exemplo. Os índices de violência contra a mulher são ainda muito altos, principalmente, para mulheres negras. O Brasil se destaca pelos índices de feminicídio. Enfim, são muitos os dados que demonstram que muito ainda precisa ser feito. A violência entre os homens também é reflexo das normas de gênero e os homens pagam um preço muito alto por isso, sobretudo, os homens jovens e negros, que são os que mais morrem por homicídio no Brasil.

O Blog da EdUERJ convida todos a conferirem o livro “Precisamos falar com os homens? Colonialidade e estratégias de transformação das masculinidades”, disponível em formato epub ou impresso sob demanda no site da EdUERJ.